Escrever pode mudar tudo.


segunda-feira, 26 de julho de 2010

O Leitor

Acabei de ler O Leitor, de Bernhard Schlink. Bom livro, comovente. Não é grande literatura, o livro cresce a partir do meio. Do meio pro fim, o autor consegue criar belas frases, imagens profundamente impactantes, ainda ou porque singelas. Em algumas partes, no início, chega a ser tosco. Mas a trama como um todo é rica, complexamente humana e comovente. O autor deveria ter aprofundado alguns temas, mas optou por um distanciamento que lhe poupou talento e produziu um grande efeito. Livros assim produzem em mim a sensação de que eu seria capaz de escrever um bom livro mesmo sem ser um grande escritor. Nesse caso, mais ainda, porque o autor é juiz e professor de Direito e Filosofia.


Chamou-me a atenção no livro, como sói acontecer em muitas novelas, a individualidade do narrador. O narrador é alguém que não presta contas a não ser a si mesmo. Distante da filha, distante do pai, que era distante dele. Vive boa parte do tempo recolhido em sua interioridade. É o supremo condutor do seu destino. Não sei se esse traço é mais forte por se tratar de um autor alemão. Os alemães sempre me pareceram muito senhores de si.

O livro passa a mensagem de que só podemos viver plenamente nosso mundo interior quando vivemos completamente nossa individualidade, o que é muito complicado para nós latinos que temos nossas vidas tão misturadas com as de nossos pais, irmãos, filhos e amigos. Além disso, nunca podemos completamente conhecer o outro, ainda que o amemos. Essa interioridade escondida na individualidade é sempre solitária e impede o acesso do outro.

O amor é, então, retratado como a compreensão do outro, uma compreensão que nunca se esgota. Porque somos infinitos em nossa complexidade e em nossos motivos, o amor, a compreensão do outro, precisa ser igualmente infinito. A compreensão, porque deriva do amor, exclui o julgamento; é isso que o autor nos diz em uma das passagens mais belas no livro:

“Queria, ao mesmo tempo, compreender e julgar o crime de Hanna. Mas era algo terrível demais para isso. Quando tentava compreendê-lo, tinha a sensação de não julgá-lo como deveria. Quando o julgava como cabia julgá-lo, não havia lugar para a compreensão”. (p. 173)

A tradição judaico-cristã, há muito compreendeu essa dicotomia entre o amor e o julgamento. O Deus do Velho Testamento é o Deus do Juízo Final, mas o Deus do Novo Testamento é o Deus compassivo que não julga aqueles que ama. Na verdade, Deus é o mesmo, já no Velho Testamento é Ele quem enuncia:

“Não quero sacrifícios, misericórdia quero”

No Novo Testamento é seu Filho quem virá, no último dia, para julgar os vivos e os mortos. Em verdade, talvez Deus seja a conciliação perfeita entre esses dois inconciliáveis: amor e julgamento, misericórdia e justiça, pois é em Deus que todos os opostos se conciliam na perfeição da caritas.

O Direito é uma carreira que envolve julgamento e o julgamento, para ser justo, deve sempre ser feito com compreensão, com amor. Quando não atentam para isso, os operadores do Direito correm o risco de empobrecer sua decisão e reduzir a complexidade de tudo quanto é humano. Bernhard Schilink expressa assim esse risco:

“Não me sentia bem em nenhum dos papéis que vira os juristas exercendo no processo contra Hanna. A acusação me parecia uma simplificação tão grotesca quanto a defesa, e ser juiz era, entre as simplificações, certamente a mais grotesca de todas”. (p. 197)

Até que nos venha o amor estaremos, pois, sozinhos em nossas decisões, em nossos julgamentos e, com certeza, em nossos sofrimentos mais profundos. Mesmo assim, em alguns casos, é a vivência dessa individualidade que nos salva e dá sentido à nossa vida, quando nela, por meio dela ou apesar dela nos abrimos para o amor.

Fort, 30.03.2009
Nagibe de Melo Jorge

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