Escrever pode mudar tudo.


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Visita a Santo Agostinho

 Saímos de Milão quando a manhã despertava. O dia estava gelado, mas o céu azul deixava o sol bastante à vontade para fazer brilhar os campos, ciprestes e regatos da região da Lombardia. Chegamos na estação de Pavia ainda cedo. O destino era o mosteiro de Certosa de Pavia, uma magnífica construção que remonta ao século XVII. De Pavia pegamos outro trem para Certosa. Dez minutos. Descemos na estação pequena e deserta, absolutamente deserta. Não havia funcionários da ferrovia nem despachantes. Apenas máquinas vendiam bilhetes. Ao fundo, bem ao fundo, um imenso muro de tijolos vermelhos. Era o mosteiro. Levamos cerca de vinte minutos para contornar todo o muro, passando por lindas paisagens rurais desertas. Apenas um turista americano ia à nossa frente fotografando tudo. Aparentemente um seminarista. Chegamos à frente ao mosteiro. Podíamos ver o esplendor da construção pela cúpula no monastério, que se divisava ao longe.
Fechado.
O horário de visitas só começava às duas da tarde. Tempo demais para esperar. Ficamos ali apreciando a construção que se fechara para nós, deixando-nos impressionar pelo lugar, pelos sons e pela decepção. Recuperamos o fôlego e voltamos para a estação. Novo trem para Pavia.
Em Pavia, pegamos um táxi. Pedimos que nos levasse para San Pietro in Cielo d’Oro, a pequena igreja que abriga os restos mortais de Santo Agostinho. O taxista namorava uma brasileira e simpatizou conosco. Havia estudado cinema na Universidade de Bolonha, mas a crise impedia que seguisse outros planos. Fora aluno de Umberto Eco, o Eco que eu não encontrara em Milão, nem em Bolonha, nem em Pavia. William pensava em morar no Brasil, o gigante outrora adormecido.
San Pietro in Cielo d’Oro é uma igreja do século XII, toda feita de tijolos e esconde-se em uma pequena praça que, naquela época do ano, estava coberta de folhas outonais em tons marrons amarelados. A igreja é pequena, mas a fachada rústica em estilo românico consegue ser imponente. Talvez porque ali dentro está Santo Agostinho, talvez porque na fachada há uma placa de mármore com uma passagem da Divida Comédia, onde Dante proclama a grandeza do santo e a paz do túmulo:
O corpo, donde a expulsaram, jaz
em Cieldauro, e ele veio, da aflição
e do exílio, direto pra esta paz
Forcei o trinco gelado da porta estreita com alguma ansiedade. “Entrai pela porta estreita porque larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição”. Fechado. “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”.
Ficamos um bom tempo ali, olhando pelo vidro e admirando a fachadaa. O nosso amigo taxista dividia conosco a frustração. Talvez fosse tanto o desapontamento em meus olhos que ele se ofereceu para mostrar a cidade, de graça. Insistiu. Aceitamos constrangidos. Passeou um pouco conosco e nos deixou na catedral de Pavia. Uma construção majestosa, também em estilo românico, mas muito maior, a fachada elegantemente recortada, com uma imensa cúpula central. A torre oeste havia caído, ainda podíamos ver os escombros. Ao lado, nos indicou um restaurante onde almoçamos e tomamos um inusitado vinho etrusco em vasilhas etruscas. Il Cupolone. Boa e acolhedora comida.
A Universidade de Pavia é uma das mais antigas e respeitadas da Europa. Descobrimos que tínhamos amigos em comum com o dono do restaurante. Ele já havia morado em Fortaleza. Mundo pequeno. Pus-me a pensar nos caminhos e descaminhos da vida. Santo Agostinho de Tagaste, bispo de Hipona, hoje uma pequena cidade da Argélia, teve seu corpo trazido para Pavia no século VIII, cerca de trezentos anos depois de sua morte. Quanto fores velho, estenderás a mão e outro te cingirá e te levará para onde não queres ir. Fomos ver um mosteiro e o túmulo majestoso de Santo Agostinho, ao invés disso, fizemos novos amigos, sentimos os efeitos da crise européia sobre um jovem cineasta e tomamos vinho etrusco. Não havíamos planejado nada daquilo. Deixamo-nos ir. Há tempo para tudo debaixo do céu. Lembrei de novo em San Pietro in Ciel d’Oro. O horário da passagem de volta, já comprada, não nos permitia uma nova tentativa em San Pietro, mas decidimos arriscar.
Andamos apressados atravessando a cidade, da Catedral até San Pietro, passando pela Universidade, o burburinho de estudantes. O vinho nos havia aquecido. Chegamos em San Pietro faltando exatos trinta minutos para a partida de nosso trem de volta. Entramos. Lá estava o túmulo de Santo Agostinho, em mármore branco. Realmente majestoso. Bem no centro do altar. Ninguém na igreja. Decidi subir ao altar, ultrapassei a cancela, toquei o túmulo do grande santo. Veio um padre, verificou qualquer coisa e desapareceu novamente na sacristia. A não ser por uma placa de mármore que registrava de modo solene a visita de João Paulo II, deu-me a sensação de que Agostinho estava esquecido. Aquele não era um local de peregrinação. Conclui que Agostinho preferiria aquele silêncio, aquela paz que lhe permitira contemplar, estudar e escrever daquele modo apaixonado com que escreveu as Confissões. Não são uma biografia. São uma eloqüente abertura da alma, sem qualquer pudor. São um se mostrar a Deus e encontrar-se com Ele. Pois, se é verdade que Ele nos conhece tudo, é também verdade que respeita nossa privacidade e que ficamos mais próximo Dele quando confiamos e nos mostramos, como quem se entrega ao amor.
Ali estava eu, no centro do altar, junto ao túmulo que acreditava que não veria jamais. Na parte de baixo, os ossos do filósofo Boécio, nascido cinqüenta anos depois da morte de Agostinho, repousavam, em uma pequena cripta, há mil quatrocentos e oitenta e oito anos.


domingo, 25 de agosto de 2013

Falta














Tua falta é tão presente
Que me faz todo falta.
Descubro-me vazio e
Procuro-te no gosto que de ti
Ficou em mim.
Em pensamentos, odores e risos.
Vejo-te, então, ainda miragem...
Também minha.
Pois quando te tenho,
Faço-me em ti,
Mas quando me faltas,
Faço-me no resto que de ti
Existe em mim.


Fort., 9.11.98

sábado, 24 de agosto de 2013

Ariano Suassuna por José Vidal

Ariano Suassuna é um dos maiores escritores brasileiros. Fala do nordeste e do seu povo, mas sua temática é universal, como a de todo grande escritor. 

Abaixo, posto a apresentação do autor e de sua obra feita juiz federal e querido amigo José Vidal Silva Neto na última vez que Ariano esteve no Ceará, em uma palestra na Escola Superior de Magistratura do Estado de Ceará. José Vidal é alguém que conhece e entende profundamente a literatura brasileira e universal. Vale a pena a leitura.


Exmos. Senhores e Senhoras, Magistrados e servidores aqui presentes, caro amigo.

  
Além da gentileza dos organizadores do evento, atribuo o convite para apresentar Ariano Suassuna, nome que por si só já diz tudo, e ouso aceitá-lo, à paixão antiga e crescente que sinto pela vida e obra deste grande escritor, um dos maiores que o Brasil viu nascer.

Não estou aqui como crítico literário, que não sou e nunca fui, mas como um leitor entre leitores, que são os verdadeiros destinatários dos árduos esforços espirituais de todo criador.

A obra não é a mera duplicação da vida do escritor, mas necessariamente a pressupõe. De uma certa forma, toda obra é autobiográfica, porque é da substância da vida do autor e das que ele contemplou, que se compõe a sua arte, resultado final do processamento desta matéria bruta no cadinho da alma do artista.

Se a compreensão do enigma astroso da literatura de Ariano não se restringe ao de sua vida, passa por ela.

Nasce Ariano Vilar Suassuna em 16 de junho de 1927, na cidade de Nossa Senhora das Neves, então capital da Paraíba, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Vilar Suassuna.

Sofreu os efeitos da desordem e mal do mundo antes de ter idade bastante para compreendê-lo; contava pouco mais de três anos de idade quando seu pai, que governara o Estado no período de 1924 a 1928, foi assassinado no Rio de Janeiro, em conseqüência da cruenta luta política que se desencadeou na Paraíba às vésperas da Revolução de 1930.

Ecos deste fato sinistro e imutável repercutiram em todas as vertentes de sua obra, como nos seguintes versos de “A Acauhan- A Malhada da Onça: “Aqui morava um Rei, quando eu menino/ vestia ouro e Castanho no gibão/ Pedra da sorte sobre o meu Destino,/ pulsava, junto ao meu, seu Coração”.

Neste mesmo ano, sua mãe, que se mudara com os nove filhos para Pernambuco, por conta da insegurança reinante na Capital da Paraíba, transferiu-se para o sertão paraibano, instalando-se na Fazenda Acauhan, de propriedade da família, e depois na vila de Taperoá, onde Ariano iniciou seus estudos.

A infância passada no sertão foi fundamental para a formação do autor, pois proporcionou-lhe o contato com a cultura popular sertaneja, com as formas de expressão do povo, que viriam mais tarde a ser reelaboradas no seu universo ficcional. Ali o autor apropriou-se do que ele próprio denominou seu “mundo mítico”.

Foi fiel a esta fonte primordial de sua inspiração em todas as gamas de sua atividade literária. As histórias e casos vividos, narrados e cantados no sertão, em prosa e verso, por cantadores e repentistas populares, foram assimilados e integrados ao veio erudito da literatura mundial, adquirindo um tom pessoal inconfundível.

Esta utilização de formas do folclore e da tradição nordestina se afasta, no entanto, de um mero registro folclorista, de uma simples reprodução naturalista de costumes esquecidos e anacrônicos, reduzida às fronteiras físicas da região nordestina.

O nosso escritor não se atém aos limites da história do Brasil ou do Nordeste, por mais que se valha de seus feitos exemplares.

A realidade do Brasil é o ponto de partida, não o ponto de chegada.

Sempre com base nesta realidade, sem fugir dela, mas não se satisfazendo com o seu aspecto puramente fático, exterior, busca o seu sentido profundo, perene, que é de caráter místico, cuja compreensão requer uma abordagem indireta, vazada em linguagem carregada de símbolos.

Nestes indivíduos nordestinos sofridos, castanhos, perdidos numa terra esquecida, cruelmente crestada de sol, encena-se o inteiro drama da existência humana, que chama a si, para se resolver, todas as esferas arcanas celestiais e infernais.

Sua verdade, porém, não é a do filósofo. Se fosse, talvez as esferas absolutas, ideais, permanecessem eternamente alheias e indiferentes ao destino do homem, criatura imperfeita e desprezível, distante do modelo sem defeitos de que foi a imagem e semelhança.

Numa visão do cosmos terrível como esta, a raça humana piolhosa se extinguiria em meio ao impassível silencio do universo. As idéias abstratas, intocadas, da Razão e do Bem, continuariam a pairar indefinidamente para ninguém, no vácuo.

Não é este, de modo algum, o sentido das coisas entrevisto em toda a sua produção, seja a teatral, seja a romanesca, seja a poética.

Estamos diante de um escritor profundamente católico, que não se contenta em aceitar o peso morto do mundo, natural e histórico, e dentro dele, do homem.

Também não concorda com a idéia de que Deus está fora e além da realidade criada.

A tensão entre contrários, característica de todos os seus trabalhos, a cisão entre mundo, homem e Deus, se reconcilia numa convergência entre a evolução que o homem sofre em suas vivências e pasme-se, a evolução que o próprio Deus sofre em sua natureza, decorrente da intervenção divina no destino dos seres criados.

Não seria contraditório admitir que um Deus perfeito muda, devém, se faz algo que não era desde o começo? Ao revés. Um Deus frio, duro, que impôs um fado imutável ao ser humano, desde o início dos tempos, é que seria imperfeito, limitado, indigno de amor.

O homem, em livros como “A Pedra do Reino”, ou em peças como “O Auto da Compadecida”, se diviniza, se salva, é amado no cerne da misericórdia divina, inspira a piedade de Nossa Senhora, concebida sem pecado, que curva mesmo a vontade inflexível do Pai e do Filho.

Os mestiços, cangaceiros, pícaros, fanáticos, se vestem com os mantos da esperança de reis sagrados, de sonho, transfiguram simbólica e alquimicamente sua realidade. Alçam-se aos céus.

Deus se humaniza e se aproxima do homem. É inerente à sua perfeição comprometer-se com a fragilidade humana, assumir o seu invólucro mortal e pecador, sofrer com sua mais amada criatura.

O resgate e a salvação de toda a criação, este é o drama vivenciado no centro da obra de Ariano Suassuna.

Não é a razão ou o bem, que salvam o homem. Há dentro dele uma carga irredutível de irracionalidade, de maldade, que só a graça misericordiosa de Deus e da compadecida fazem cessar. Por si, o homem não se livra das sujeiras adquiridas com o pecado original.

Mas a constância do feio pecaminoso na alma humana, contrariada sempre pela angústia e pela sede de perfeição perdida, sensibilizam Deus. O espetáculo trágico-cômico da vida humana, oscilante entre extremos é, queiramos ou não, belo. O belo que vem da contemplação do feio que absurdamente se nega a sê-lo, e crê, com fé, que será transfigurado em seu exato oposto.

Ariano Suassuna em sua obra literária faz as vezes de Deus na criação. A redenção de ambos é de cunho estético. Ambos amam suas criaturas e acabam por acreditar que são mais belas, melhores, merecedoras de sublimação, do que realmente são.

As belas mentiras que estes seres fabricam acabam por parecer verdades e, de repente misteriosamente se convertem na verdade mesma.

A beleza trágica, mas também cômica, desta embrulhada epopéia humana, concluem em amor e perdão eternos.

Na sua obra “Iniciação à Estética”, Ariano anuncia implicitamente o seu próprio ideário estético.

O feio, o mal, o torto, não são simples ausências de ser ou de existência, não se confundem com o nada, nem servem só para realçar, e tornar nítido o bom e o verdadeiro, como defendia Santo Agostinho.

O feio, o mal, existem, e causam uma singular mistura de sentimentos paradoxais de horror, repulsa, curiosidade, piedade, e até atração, para alguns. De Bruyne, citado por Ariano, diz o seguinte: é o feio, a desgraça, a derrisão, que nos revelam o profundo mistério da nossa realidade complexa, fazendo-nos sentir, num mistério estranho, o valor da nossa vida, a miséria que nos espreita e que contradiz tão cruelmente nossos desejos, nossas esperanças e nossos pensamentos. Quando o Feio surge na arte, é um meio de nos fazer captar de modo intuitivo o sentido da vida.

Mais adiante, o próprio Ariano complementa este pensamento, mostrando-nos, talvez, inconscientemente, a difícil missão que, desde o início da sua carreira, se deu como criador. O enigma do mundo não é algo etéreo, apolíneo. É, sim, violento, chocante, algo apreensível simplesmente por uma captação intuitiva do que nele há de primordial e elementar. 

Finalmente, só com a transfiguração do mal e do feio, atinge-se o subterrâneo da natureza humana e o fundamento de desordem do real, assim colocados diante de nós como uma visão integral do nosso destino, no que tem de belo e bom, mas também no que possui de falhado, de cruel e infortunado.

Sobre o mistério da pessoa e da obra de Ariano, muito mais poderia ser dito. Mas a melhor reação a este inexaurível mistério, no fim das contas, é a do silêncio extasiado.

Deixo-os com a presença, que todos nós ansiamos, deste gênio e intérprete mor da jornada mística da sociedade brsileira para assumir o seu papel fundamental no concerto dos povos.

Muito obrigado.

José Vidal.






quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Laura

Foi em 1992, eu fazia o 3o. ano do ensino médio e queria prestar vestibular para as exatas. Física. Gostava do Einstein. No colégio li um livro dele muito inspirador: Como vejo o mundo. Deparei-me com um poema simples e forte, em uma coletânea dos alunos do Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA, assinado simplesmente por Gugu. Acho que li o poema uma ou duas vezes e dele jamais me esqueci. Era assim:



Laura,
Não use esses saltos
Seus olhos verdes
Jamais amadurecerão.



Seco, direto e marcante. Conseguiu criar em mim uma imagem indelével. Poucos anos depois encontrei minha Laura, com quem divido minha vida até hoje. Ela tem olhos de uma cor indefinível, às vezes verdes. Continua incapaz de amadurecer. Conserva o olhar e o deslumbramento da criança, a mesma energia e desassossego frente à vida, uma sensualidade despojada de menina que se descobre mulher.

Casamos, vieram as angústias da vida adulta, a maravilhosa responsabilidade de educar os filhos, mas quando estou com ela ainda sou capaz de saborear esse gosto de seriguela verde, um gosto de infância e sol entre as mangueiras.


A vida passa. Envelhecemos depressa. É preciso conservar um certo verdor. Presto esta singela homenagem à minha esposa e companheira de tantos anos e ao poeta que a profetizou.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Sobre Poesia: O Amor, A Vida e Os Dias

Publiquei ontem O Amor, A Vida e Os Dias. É como se tivesse tirado uma carga dos meus ombros, pagado uma dívida para comigo mesmo. Sempre quis escrever e publicar. Passei muitos anos escrevendo os poemas colacionados nesse livro. E, então, publiquei. Um alívio, mas também um medo, um susto. Tudo tão fácil com o Kindle Direct Publishing – KDP da Amazon, num instante, pronto: o trabalho exposto para o mundo. Uma aventura.

Por que poemas? Poemas são mais fáceis para mim. Algumas palavras, uma imagem, uma emoção, um sentimento. O poema é rápido e forte, como um golpe preciso. Gosto dos poemas curtos, de poucos versos. Gosto dos versos livres, com ritmo e força. O poema-imagem, o poema-ritmo, o poema-emoção.

Muitas pessoas não gostam de poesia porque, na verdade, não entendem poesia. É como música. Geralmente ocorre que, na primeira vez que assistimos a um concerto, procuramos mais ver que ouvir. Olhamos atentamente, procuramos alguma coisa no palco, a expressão dos músicos, os gestos do maestro, procuramos a imagem porque vivemos no mundo da imagem, mas ali só nos será dado o som. É preciso escutar a música, fechar os olhos, deixar-se levar pelo som sem ansiedade.

Nas primeiras vezes que lemos um poema, procuramos uma história, um sentido, um desfecho, uma narrativa. E o poema nos deixa em suspenso, uma imagem que se forma e se desfaz, poderosa, um gosto que fica, um quê que nos faz sentir, mas não conclui, não nos conta a verdade, apenas nos abre algumas enferrujadas portas da percepção. No começo não gostava de poesia pelo excesso de formalismo, pelas rimas, métrica, estrofes. Quem é capaz de, pelo menos, classificar os inumeráveis tipos de versos: alexandrinos, dáctilos, redondilha maior e menor etc? Além disso, o poema não tem estória, não tem sentido, o poema não informa. Mas aí conheci Bandeira, Drumond, Cecília, Leminski e Pessoa, o eterno fingidor...

Na verdade, o poema não quer informar. O poema quer emocionar, quer transmitir um sentimento, uma imagem, uma cor, um odor, uma perplexidade, um choque. O mesmo choque que teve o poeta. O poema quer levar para o leitor a mesma pancada, o mesmo espanto, a mesma surpresa. Muitos não entendem o poema porque ficam a procurar uma narrativa, uma estória, um sentido.

Poemas não têm sentido porque a vida não tem sentido. A poesia expressa o nonsense do coração. As emoções não têm razão, não dependem da razão. A razão explica a emoção, mas as emoções não explicam nada. Somos nós que racionalizamos a vida e as emoções, contamos para nós mesmos uma história, construímos uma narrativa para que a emoção possa ser explicada.

Pois a poesia está antes de qualquer explicação. Pura alegoria. Pura perplexidade. A poesia é a emoção em estado quase bruto, vem logo depois da música. A música ainda lhe é anterior porque a música é pré-vocabular.

É claro que há outro tipo de poesia. A poesia antiga, por exemplo, é inteiramente narrativa. O exemplo maior é a poesia homérica e a poesia romana clássica, que influenciou os belíssimos cordéis nordestinos. Nesse caso, o ritmo e a métrica são determinantes para ajudar a memorizar toda a narrativa, além de dar-lhe vida e frescor, pois, naquela época, as narrativas passavam de geração a geração pela tradição oral.


A poesia moderna, contudo, e sem nenhum prejuízo da poesia clássica, tem também essa outra vocação, talvez uma vocação menor, mas maravilhosa e inebriante. A imagem, o som, a emoção antes e para além da narrativa. Fazer poesia é construir imagens de sentimentos.