Escrever pode mudar tudo.


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Natal Vem Vindo

O Natal vem vindo como o comercial da coca-cola, uma música alegre, muitas luzes, cores e, aos poucos, nos empurra para o lado, nos desloca um pouco fora de nós mesmos enquanto observamos felizes as luzinhas ou observamos as luzinhas felizes, a decoração, as árvores, os enfeites.

Procuramos nossos pais, irmãos, tios, primos, os amigos distantes e os mais próximos, os colegas de trabalho, renovamos aqueles velhos e repetidos votos desbotados como uma maneira de reafirmar para os outros nossa mais genuína felicidade, sim, somos felizes e gratos. Lembramos de todas as pessoas que não serão lembradas até o final do dia porque mesmo esse dia é curto para lembrar de tanta gente e nos invade um medo difuso e sermos também esquecidos e de magoá-las e nos esforçamos ao máximo para ligar para todos, uma mensagem, um olá, um “feliz natal”, qualquer coisa que diga para o outro que sim, nós estamos aqui e nos importamos.

É Natal, estamos todos felizes e queremos proclamar isso, sobretudo no facebook, e não queremos dar para nós mesmo a impressão de que esquecemos ou de que não nos importamos, afinal é só hoje, é hoje que precisamos lembrar, é hoje que não podemos esquecer ninguém, os presentes, um chocolate pelo menos, o amigo-secreto doce para não passar em branco.

Temos medo de passarmos em branco sem dizer para os outros que somos felizes e que nos importamos com a felicidade deles ainda que não nos importemos tanto assim, ou apenas na medida em que se importar nos torna mais felizes. E já não acreditamos mais em Papai Noel, nem na história do menino que nasceu há dois mil anos esquecido em uma manjedoura, no meio dos bichos, ainda que haja tantos meninos esquecidos ainda hoje. E só agora, justo hoje, nos lembramos das cestas que pretendíamos distribuir, mas o corre-corre diário nos impediu, impediu não, adiou, preferimos pensar que apenas adiou.

E, por favor, que hoje a televisão não nos venha com notícias tenebrosas de assaltos, chacinas e meninos que nasceram esquecidos, pois ainda temos que assar um peru, gelar um vinho, melhor dois ou três, pode ser que apareça mais alguém. Sempre aparece mais alguém na noite de Natal e como é bom acreditar que se importam conosco e que estarão ao nosso lado nos guiando como a estrela guiou os três reis magos para ver o menino que nasceu meio esquecido mas se tornou rei.

Finalmente, vamos dormir meio embriagados, meio desapontados. Como passou rápido! Chegamos a pensar que queríamos mais tempo para nos importar mais, para sermos mais felizes, para distribuir mais atenção e presentes e sorrisos, mas há sempre o que fazer, além disso a rotina nos dá mais segurança, e adormeceremos pensando na estrela que guiou os três reis e que está em algum lugar perdida no meio de tantas luzinhas piscando e pensamos no menino e como estava quieto e calmo o estábulo naquela noite de Natal e como todos estavam felizes e, de repente, tudo que queríamos era estar também naquele estábulo, mas alguma coisa nos empurrou para fora de nós mesmos.


domingo, 8 de dezembro de 2013

Henri Le Boursicaud

Nunca pensei que poderia encontrar Henri Le Boursicaud ali na praça onde caminho. Logo na primeira volta percebi que era ele: velhinho, barba branca, costas curvadas. Estava sentado sob a tenda do Emaús, recebendo doações juntamente com o Airton Barreto, um advogado cearense que mora no Pirambu e tem uma vida de trabalho dedicado aos pobres.

Dei mais algumas voltas, não sabia como abordá-lo. Caminhava com a Trycia e o Paulo. Não queria interromper o exercício, mas tinha medo que ele fosse embora. Não queria falar com ele rapidamente, um cumprimento aligeirado, e depois voltar a caminhar, queria estar com ele por um tempo. Havia mais alguém com eles, uma certa agitaçã, queria mais privacidade. Esperei. Mais uma volta. Mais outra.

Henri Le Boursicaud, o padre redentorista, considerado por muitos um louco, por outros um profeta; o padre que aos 45 anos fez a opção pelos pobres e fundou o Emaús Liberté, uma vertente de proposta mais radical que o Emaús International de Abbé Pierré; o velho que fala verdades duras com os olhos faiscantes: já disse diversas que a Igreja Católica, tal qual a conhecemos, irá acabar e se transformará em uma comunidade de comunidades; o francês bretão que, contra as ordens de seu governo, foi ao Iraque, durante a guerra de 2003, para apoiar os iranianos refugiados; o homem que, aos 75 anos, percorreu 1.500km, de Paris a Roma, a pé, para pedir reformas a João Paulo II. Estava ali.



Agora, ficaram só os dois. De vez em quando, Airton afastava-se um pouco para atender alguém que, de dentro do carro, entregava suas doações. Era a minha vez. Aproximei-me, cumprimentei o Airton, que já conhecia, de modo caloroso, e me dirigi ao Pe. Henri.

- Pe. Henri, vim aqui lhe prestar minha homenagem! Sorri. Apertei suas mãos macias olhando bem no fundo de seus olhos azuis emoldurados por um rosto de pele rósea e lisa. Aos noventa e quatro anos, as mãos trêmulas, seu olhar vivo, sua pele vermelha, seu nariz fino, sua barba branca, tudo nele resplandecia à juventude. Ele mal falava, mas parecia me entender. Agarrou meu braço com firmeza parecendo indicar a cadeira ao lado. Sentei-me.

Fiquei ali com ele, tentando captar o que ele diria, esperando uma palavra, um ensinamento. E ele calado, presente, olhava atento. Falávamos entre nós, Airton, eu, Trycia, Paulo. Criei coragem:

- E a oração, Pe. Henri?

- É o motor. O homem não faz nada sem a oração. A oração consiste em reconhecermos a todo instante que tudo que nos acontece é um presente amoroso de Deus.

- E o mais importante? Diga para ele o que é o mais importante. Airton interveio quase gritando para que ele ouvisse.

- Justiça! Não há amor sem justiça. Justiça! Ele bradava com uma energia que pensei ser característica dos bretões de sua estirpe ou muito própria do Espírito Santo. Os olhos arregalados. Uma rispidez e seriedade que, de repente, explodiam em um sorriso.

- Deus jamais se repete! – Apontou para mim com o olhar mais inquisitivo que acusador. Enérgico.

- Você é único! Você é única! – Apontava para Trycia – Nunca houve outro igual a você nem jamais haverá. Só você pode fazer e falar o que lhe é dado fazer e falar, por isso nunca se omita em defesa da Justiça!


Ficamos calados. Suas palavras ecoavam e, aos poucos, silenciavam sob o barulho da cidade e o canto dos pássaros. Em dado momento, me mostrou, em um de seus livros, uma foto de sua família. Sorriu um riso espontâneo, largo, quando lembrou o fato de que a mãe estava sentada e o pai em pé, na foto, para disfarçar a diferença de altura: o pai tinha 1,80m, a mãe era mignon. Trocava o português pelo francês, o francês pelo português, ia e voltava com o mesmo sotaque. Falou da morte da mãe, uma pequena bretã, firme, enérgica e teimosa, como ele, falou do pai, prisioneiro na Grande Guerra, e dos irmãos, falou do seminário onde foi morar aos 11 anos, da vontade de voltar para casa, da persistência. O dedo indicador tremia sobre a foto. Por fim, disse:

- Tous sont morts. Sorriu.

Fiquei mais um pouco. Estive ali com Henri Le Boursicaud. Depois me despedi, caminhei para casa pensando na Iracema e nos outros mendigos que vivem pela praça e em quantas vezes somos gentis com eles para não precisarmos ser justos, em quantas vezes doamos ao Emaús e a outras instituições de caridade para aliviarmos a consciência e não precisarmos pensar da maldita injustiça.



Curva

Linhas sinuosas
Caminhos sinuosos
Vidas sinuosas
Como tuas curvas sinuosas

Pensamentos sinuosos
Que se embaraçam
Em teus longos
Cabelos negros

A menor distância entre nós dois:
Uma curva
Por que não chego?

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Navegar é preciso

Navegar é preciso,
Viver não é preciso.
É visceral navegar e amar,
O agitado mar da vida desbravar.
E quando a morte chegar,
Numa enorme vaga escondida,
Que jubiloso será
Perecer n’alto mar,
Entre as vagas bravias,
No maravilhoso explorar.

Afaste-se de nós, portanto,
Todo porto seguro,
Todo temor do escuro.
Pois tu já não sabes
Quão impreciso é viver?
Qualquer recurso de guia
A nau da vida não nos dá
Astrolábios, mapas, uma só melodia.

Por isso, amigo,
Não calcula, não faz planos.
Antes te deixa levar
Pelo balanço do mar
Pois jamais saberás
Quando e aonde chegar.

Volta-te para as estrelas
Em tu’alma escondidas
Elas que mudam de lugar
Que são tão coloridas,
Por vezes impossíveis de achar,
Com sua dança imprecisa,
São que te podem guiar.


Nagibe Jorge

domingo, 8 de setembro de 2013

Ler Devagar

"Para aprender a ler é preciso ler bem devagar, e em seguida é preciso ler bem devagar e, sempre, até o último livro que terá a honra de ser lido por você, será preciso ler bem devagar. É preciso ler devagar um livro tanto para desfrutar dele quanto para se instruir ou para criticá-lo.
[...]
Você me dirá que há livros que não podem ser lidos devagar, que não suportam a leitura lenta. E os há, de fato, mas esses são os livros que não é preciso ler em absoluto."

Émile Faguet (1847-1916)

sábado, 7 de setembro de 2013

Fragmentos

Clique. Ataque químico matou 1.429 pessoas na Síria, diz Kerry. Clique. Centrais sindicais fazem manifestações em todo o Brasil. Clique. Passo de uma coisa a outra em uma fração de segundo. Lembro de Émile Faguet e me invade uma sensação de culpa: leia devagar, tudo que merece ser lido deve ser ido devagar. Clique. Ainda não paguei essa multa. Não tive tempo. Vou perdendo mais esses momentos. De algum modo, vou perdendo a noção do belo pela noção do rápido. Clique. Aos poucos vou me perdendo de mim mesmo. Clique. Após dias de protestos São Paulo registra quase 200 km de filas. Hoje à noite preciso parar para me encontrar um pouco. Prometo não ligar a televisão quando for dormir. Quem vai buscar os meninos? Respondo meio zumbi: que horas? Será que respondi ou apenas pensei em responder? Clique. Alessandro Lima publicou na sua linha do tempo. Preciso ligar par ele. Amor? Amooor? Vou chegar tarde. Tchau. Beijo. Pego os meninos. O logos, o logos... Aristóteles. A linguagem fragmentada. Haverá vida depois da morte? Não rezei ontem à noite. Clique. Jesus te ama. Quem ama curte. Clique. Preciso malhar. Quem acredita compartilha. Clique. A linguagem é uma instância constitutiva do mundo. Qual linguagem? Talvez exista algum sentimento para além da linguagem. Clique. Sobre natureza e linguagem. Noam Chonsky. R$ 55,90. Caro. Claro, com certeza há. Não sei, na verdade não tenho certeza de nada. Esse meu sentimento de não pertencimento está fora da linguagem. Ou vem da linguagem? Preciso escrever. Clique. Câmara dos Deputados livra Natan Donadon de cassação. Será que o Brasil tem jeito? Clique. Decido me levantar e cuidar da vida. Não consigo. Volto. Clique. Sua caixa de mensagens está vazia. Ainda está vazia. Tamborilo os dedos na mesa. Trinco os dentes. Escuto o barulho de um vidro se quebrando. Paaaaai, o leite derramou! Alguém grita. Finalmente me levanto. Não leio mais que fragmentos. Pego um pano. Não escuto mais que fragmentos. Vou limpando o leite do chão. O pano úmido e frio me enoja um pouco. Tento me concentrar. Junto os pedaços do copo como quem junta os pedaços de si mesmo. São tão transparentes. Os meus pedaços são mais opacos. Tento criar uma história que me traga de volta a ilusão de totalidade. Pego a pá. Tudo pro lixo. Tomara que sejam reciclados.

Foto: escultura em vidro de Daniel Arsham

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Visita a Santo Agostinho

 Saímos de Milão quando a manhã despertava. O dia estava gelado, mas o céu azul deixava o sol bastante à vontade para fazer brilhar os campos, ciprestes e regatos da região da Lombardia. Chegamos na estação de Pavia ainda cedo. O destino era o mosteiro de Certosa de Pavia, uma magnífica construção que remonta ao século XVII. De Pavia pegamos outro trem para Certosa. Dez minutos. Descemos na estação pequena e deserta, absolutamente deserta. Não havia funcionários da ferrovia nem despachantes. Apenas máquinas vendiam bilhetes. Ao fundo, bem ao fundo, um imenso muro de tijolos vermelhos. Era o mosteiro. Levamos cerca de vinte minutos para contornar todo o muro, passando por lindas paisagens rurais desertas. Apenas um turista americano ia à nossa frente fotografando tudo. Aparentemente um seminarista. Chegamos à frente ao mosteiro. Podíamos ver o esplendor da construção pela cúpula no monastério, que se divisava ao longe.
Fechado.
O horário de visitas só começava às duas da tarde. Tempo demais para esperar. Ficamos ali apreciando a construção que se fechara para nós, deixando-nos impressionar pelo lugar, pelos sons e pela decepção. Recuperamos o fôlego e voltamos para a estação. Novo trem para Pavia.
Em Pavia, pegamos um táxi. Pedimos que nos levasse para San Pietro in Cielo d’Oro, a pequena igreja que abriga os restos mortais de Santo Agostinho. O taxista namorava uma brasileira e simpatizou conosco. Havia estudado cinema na Universidade de Bolonha, mas a crise impedia que seguisse outros planos. Fora aluno de Umberto Eco, o Eco que eu não encontrara em Milão, nem em Bolonha, nem em Pavia. William pensava em morar no Brasil, o gigante outrora adormecido.
San Pietro in Cielo d’Oro é uma igreja do século XII, toda feita de tijolos e esconde-se em uma pequena praça que, naquela época do ano, estava coberta de folhas outonais em tons marrons amarelados. A igreja é pequena, mas a fachada rústica em estilo românico consegue ser imponente. Talvez porque ali dentro está Santo Agostinho, talvez porque na fachada há uma placa de mármore com uma passagem da Divida Comédia, onde Dante proclama a grandeza do santo e a paz do túmulo:
O corpo, donde a expulsaram, jaz
em Cieldauro, e ele veio, da aflição
e do exílio, direto pra esta paz
Forcei o trinco gelado da porta estreita com alguma ansiedade. “Entrai pela porta estreita porque larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição”. Fechado. “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”.
Ficamos um bom tempo ali, olhando pelo vidro e admirando a fachadaa. O nosso amigo taxista dividia conosco a frustração. Talvez fosse tanto o desapontamento em meus olhos que ele se ofereceu para mostrar a cidade, de graça. Insistiu. Aceitamos constrangidos. Passeou um pouco conosco e nos deixou na catedral de Pavia. Uma construção majestosa, também em estilo românico, mas muito maior, a fachada elegantemente recortada, com uma imensa cúpula central. A torre oeste havia caído, ainda podíamos ver os escombros. Ao lado, nos indicou um restaurante onde almoçamos e tomamos um inusitado vinho etrusco em vasilhas etruscas. Il Cupolone. Boa e acolhedora comida.
A Universidade de Pavia é uma das mais antigas e respeitadas da Europa. Descobrimos que tínhamos amigos em comum com o dono do restaurante. Ele já havia morado em Fortaleza. Mundo pequeno. Pus-me a pensar nos caminhos e descaminhos da vida. Santo Agostinho de Tagaste, bispo de Hipona, hoje uma pequena cidade da Argélia, teve seu corpo trazido para Pavia no século VIII, cerca de trezentos anos depois de sua morte. Quanto fores velho, estenderás a mão e outro te cingirá e te levará para onde não queres ir. Fomos ver um mosteiro e o túmulo majestoso de Santo Agostinho, ao invés disso, fizemos novos amigos, sentimos os efeitos da crise européia sobre um jovem cineasta e tomamos vinho etrusco. Não havíamos planejado nada daquilo. Deixamo-nos ir. Há tempo para tudo debaixo do céu. Lembrei de novo em San Pietro in Ciel d’Oro. O horário da passagem de volta, já comprada, não nos permitia uma nova tentativa em San Pietro, mas decidimos arriscar.
Andamos apressados atravessando a cidade, da Catedral até San Pietro, passando pela Universidade, o burburinho de estudantes. O vinho nos havia aquecido. Chegamos em San Pietro faltando exatos trinta minutos para a partida de nosso trem de volta. Entramos. Lá estava o túmulo de Santo Agostinho, em mármore branco. Realmente majestoso. Bem no centro do altar. Ninguém na igreja. Decidi subir ao altar, ultrapassei a cancela, toquei o túmulo do grande santo. Veio um padre, verificou qualquer coisa e desapareceu novamente na sacristia. A não ser por uma placa de mármore que registrava de modo solene a visita de João Paulo II, deu-me a sensação de que Agostinho estava esquecido. Aquele não era um local de peregrinação. Conclui que Agostinho preferiria aquele silêncio, aquela paz que lhe permitira contemplar, estudar e escrever daquele modo apaixonado com que escreveu as Confissões. Não são uma biografia. São uma eloqüente abertura da alma, sem qualquer pudor. São um se mostrar a Deus e encontrar-se com Ele. Pois, se é verdade que Ele nos conhece tudo, é também verdade que respeita nossa privacidade e que ficamos mais próximo Dele quando confiamos e nos mostramos, como quem se entrega ao amor.
Ali estava eu, no centro do altar, junto ao túmulo que acreditava que não veria jamais. Na parte de baixo, os ossos do filósofo Boécio, nascido cinqüenta anos depois da morte de Agostinho, repousavam, em uma pequena cripta, há mil quatrocentos e oitenta e oito anos.


domingo, 25 de agosto de 2013

Falta














Tua falta é tão presente
Que me faz todo falta.
Descubro-me vazio e
Procuro-te no gosto que de ti
Ficou em mim.
Em pensamentos, odores e risos.
Vejo-te, então, ainda miragem...
Também minha.
Pois quando te tenho,
Faço-me em ti,
Mas quando me faltas,
Faço-me no resto que de ti
Existe em mim.


Fort., 9.11.98

sábado, 24 de agosto de 2013

Ariano Suassuna por José Vidal

Ariano Suassuna é um dos maiores escritores brasileiros. Fala do nordeste e do seu povo, mas sua temática é universal, como a de todo grande escritor. 

Abaixo, posto a apresentação do autor e de sua obra feita juiz federal e querido amigo José Vidal Silva Neto na última vez que Ariano esteve no Ceará, em uma palestra na Escola Superior de Magistratura do Estado de Ceará. José Vidal é alguém que conhece e entende profundamente a literatura brasileira e universal. Vale a pena a leitura.


Exmos. Senhores e Senhoras, Magistrados e servidores aqui presentes, caro amigo.

  
Além da gentileza dos organizadores do evento, atribuo o convite para apresentar Ariano Suassuna, nome que por si só já diz tudo, e ouso aceitá-lo, à paixão antiga e crescente que sinto pela vida e obra deste grande escritor, um dos maiores que o Brasil viu nascer.

Não estou aqui como crítico literário, que não sou e nunca fui, mas como um leitor entre leitores, que são os verdadeiros destinatários dos árduos esforços espirituais de todo criador.

A obra não é a mera duplicação da vida do escritor, mas necessariamente a pressupõe. De uma certa forma, toda obra é autobiográfica, porque é da substância da vida do autor e das que ele contemplou, que se compõe a sua arte, resultado final do processamento desta matéria bruta no cadinho da alma do artista.

Se a compreensão do enigma astroso da literatura de Ariano não se restringe ao de sua vida, passa por ela.

Nasce Ariano Vilar Suassuna em 16 de junho de 1927, na cidade de Nossa Senhora das Neves, então capital da Paraíba, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Vilar Suassuna.

Sofreu os efeitos da desordem e mal do mundo antes de ter idade bastante para compreendê-lo; contava pouco mais de três anos de idade quando seu pai, que governara o Estado no período de 1924 a 1928, foi assassinado no Rio de Janeiro, em conseqüência da cruenta luta política que se desencadeou na Paraíba às vésperas da Revolução de 1930.

Ecos deste fato sinistro e imutável repercutiram em todas as vertentes de sua obra, como nos seguintes versos de “A Acauhan- A Malhada da Onça: “Aqui morava um Rei, quando eu menino/ vestia ouro e Castanho no gibão/ Pedra da sorte sobre o meu Destino,/ pulsava, junto ao meu, seu Coração”.

Neste mesmo ano, sua mãe, que se mudara com os nove filhos para Pernambuco, por conta da insegurança reinante na Capital da Paraíba, transferiu-se para o sertão paraibano, instalando-se na Fazenda Acauhan, de propriedade da família, e depois na vila de Taperoá, onde Ariano iniciou seus estudos.

A infância passada no sertão foi fundamental para a formação do autor, pois proporcionou-lhe o contato com a cultura popular sertaneja, com as formas de expressão do povo, que viriam mais tarde a ser reelaboradas no seu universo ficcional. Ali o autor apropriou-se do que ele próprio denominou seu “mundo mítico”.

Foi fiel a esta fonte primordial de sua inspiração em todas as gamas de sua atividade literária. As histórias e casos vividos, narrados e cantados no sertão, em prosa e verso, por cantadores e repentistas populares, foram assimilados e integrados ao veio erudito da literatura mundial, adquirindo um tom pessoal inconfundível.

Esta utilização de formas do folclore e da tradição nordestina se afasta, no entanto, de um mero registro folclorista, de uma simples reprodução naturalista de costumes esquecidos e anacrônicos, reduzida às fronteiras físicas da região nordestina.

O nosso escritor não se atém aos limites da história do Brasil ou do Nordeste, por mais que se valha de seus feitos exemplares.

A realidade do Brasil é o ponto de partida, não o ponto de chegada.

Sempre com base nesta realidade, sem fugir dela, mas não se satisfazendo com o seu aspecto puramente fático, exterior, busca o seu sentido profundo, perene, que é de caráter místico, cuja compreensão requer uma abordagem indireta, vazada em linguagem carregada de símbolos.

Nestes indivíduos nordestinos sofridos, castanhos, perdidos numa terra esquecida, cruelmente crestada de sol, encena-se o inteiro drama da existência humana, que chama a si, para se resolver, todas as esferas arcanas celestiais e infernais.

Sua verdade, porém, não é a do filósofo. Se fosse, talvez as esferas absolutas, ideais, permanecessem eternamente alheias e indiferentes ao destino do homem, criatura imperfeita e desprezível, distante do modelo sem defeitos de que foi a imagem e semelhança.

Numa visão do cosmos terrível como esta, a raça humana piolhosa se extinguiria em meio ao impassível silencio do universo. As idéias abstratas, intocadas, da Razão e do Bem, continuariam a pairar indefinidamente para ninguém, no vácuo.

Não é este, de modo algum, o sentido das coisas entrevisto em toda a sua produção, seja a teatral, seja a romanesca, seja a poética.

Estamos diante de um escritor profundamente católico, que não se contenta em aceitar o peso morto do mundo, natural e histórico, e dentro dele, do homem.

Também não concorda com a idéia de que Deus está fora e além da realidade criada.

A tensão entre contrários, característica de todos os seus trabalhos, a cisão entre mundo, homem e Deus, se reconcilia numa convergência entre a evolução que o homem sofre em suas vivências e pasme-se, a evolução que o próprio Deus sofre em sua natureza, decorrente da intervenção divina no destino dos seres criados.

Não seria contraditório admitir que um Deus perfeito muda, devém, se faz algo que não era desde o começo? Ao revés. Um Deus frio, duro, que impôs um fado imutável ao ser humano, desde o início dos tempos, é que seria imperfeito, limitado, indigno de amor.

O homem, em livros como “A Pedra do Reino”, ou em peças como “O Auto da Compadecida”, se diviniza, se salva, é amado no cerne da misericórdia divina, inspira a piedade de Nossa Senhora, concebida sem pecado, que curva mesmo a vontade inflexível do Pai e do Filho.

Os mestiços, cangaceiros, pícaros, fanáticos, se vestem com os mantos da esperança de reis sagrados, de sonho, transfiguram simbólica e alquimicamente sua realidade. Alçam-se aos céus.

Deus se humaniza e se aproxima do homem. É inerente à sua perfeição comprometer-se com a fragilidade humana, assumir o seu invólucro mortal e pecador, sofrer com sua mais amada criatura.

O resgate e a salvação de toda a criação, este é o drama vivenciado no centro da obra de Ariano Suassuna.

Não é a razão ou o bem, que salvam o homem. Há dentro dele uma carga irredutível de irracionalidade, de maldade, que só a graça misericordiosa de Deus e da compadecida fazem cessar. Por si, o homem não se livra das sujeiras adquiridas com o pecado original.

Mas a constância do feio pecaminoso na alma humana, contrariada sempre pela angústia e pela sede de perfeição perdida, sensibilizam Deus. O espetáculo trágico-cômico da vida humana, oscilante entre extremos é, queiramos ou não, belo. O belo que vem da contemplação do feio que absurdamente se nega a sê-lo, e crê, com fé, que será transfigurado em seu exato oposto.

Ariano Suassuna em sua obra literária faz as vezes de Deus na criação. A redenção de ambos é de cunho estético. Ambos amam suas criaturas e acabam por acreditar que são mais belas, melhores, merecedoras de sublimação, do que realmente são.

As belas mentiras que estes seres fabricam acabam por parecer verdades e, de repente misteriosamente se convertem na verdade mesma.

A beleza trágica, mas também cômica, desta embrulhada epopéia humana, concluem em amor e perdão eternos.

Na sua obra “Iniciação à Estética”, Ariano anuncia implicitamente o seu próprio ideário estético.

O feio, o mal, o torto, não são simples ausências de ser ou de existência, não se confundem com o nada, nem servem só para realçar, e tornar nítido o bom e o verdadeiro, como defendia Santo Agostinho.

O feio, o mal, existem, e causam uma singular mistura de sentimentos paradoxais de horror, repulsa, curiosidade, piedade, e até atração, para alguns. De Bruyne, citado por Ariano, diz o seguinte: é o feio, a desgraça, a derrisão, que nos revelam o profundo mistério da nossa realidade complexa, fazendo-nos sentir, num mistério estranho, o valor da nossa vida, a miséria que nos espreita e que contradiz tão cruelmente nossos desejos, nossas esperanças e nossos pensamentos. Quando o Feio surge na arte, é um meio de nos fazer captar de modo intuitivo o sentido da vida.

Mais adiante, o próprio Ariano complementa este pensamento, mostrando-nos, talvez, inconscientemente, a difícil missão que, desde o início da sua carreira, se deu como criador. O enigma do mundo não é algo etéreo, apolíneo. É, sim, violento, chocante, algo apreensível simplesmente por uma captação intuitiva do que nele há de primordial e elementar. 

Finalmente, só com a transfiguração do mal e do feio, atinge-se o subterrâneo da natureza humana e o fundamento de desordem do real, assim colocados diante de nós como uma visão integral do nosso destino, no que tem de belo e bom, mas também no que possui de falhado, de cruel e infortunado.

Sobre o mistério da pessoa e da obra de Ariano, muito mais poderia ser dito. Mas a melhor reação a este inexaurível mistério, no fim das contas, é a do silêncio extasiado.

Deixo-os com a presença, que todos nós ansiamos, deste gênio e intérprete mor da jornada mística da sociedade brsileira para assumir o seu papel fundamental no concerto dos povos.

Muito obrigado.

José Vidal.






quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Laura

Foi em 1992, eu fazia o 3o. ano do ensino médio e queria prestar vestibular para as exatas. Física. Gostava do Einstein. No colégio li um livro dele muito inspirador: Como vejo o mundo. Deparei-me com um poema simples e forte, em uma coletânea dos alunos do Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA, assinado simplesmente por Gugu. Acho que li o poema uma ou duas vezes e dele jamais me esqueci. Era assim:



Laura,
Não use esses saltos
Seus olhos verdes
Jamais amadurecerão.



Seco, direto e marcante. Conseguiu criar em mim uma imagem indelével. Poucos anos depois encontrei minha Laura, com quem divido minha vida até hoje. Ela tem olhos de uma cor indefinível, às vezes verdes. Continua incapaz de amadurecer. Conserva o olhar e o deslumbramento da criança, a mesma energia e desassossego frente à vida, uma sensualidade despojada de menina que se descobre mulher.

Casamos, vieram as angústias da vida adulta, a maravilhosa responsabilidade de educar os filhos, mas quando estou com ela ainda sou capaz de saborear esse gosto de seriguela verde, um gosto de infância e sol entre as mangueiras.


A vida passa. Envelhecemos depressa. É preciso conservar um certo verdor. Presto esta singela homenagem à minha esposa e companheira de tantos anos e ao poeta que a profetizou.