Escrever pode mudar tudo.


domingo, 27 de julho de 2014

João Mata-Vaca

João Mata-Vaca levantou-se, como em todos os dias, mais cedo que o sol. A luz entrava teimosa pelos buracos na taipa que aos poucos se desfazia, como se não quisesse passar pela frestas. João dormia de calças, só teve o trabalho de apertar o cinto. O chão de terra acomodava três dos cinco filhos, só os dois mais novos tinham rede. Trouxe a lenha. Ajeitou o fogo. A fumaça leitosa enchia a pequena casa de pau-a-pique e a tosse de Francisca, a terceira, quebrava o silêncio misturando-se aos sons dos bichos que acordavam. Daqui a pouco todos estariam de olho grelado. Por enquanto, só Antônia, a mais nova, mamava nos peitos secos da mãe sonâmbula e Manuel, o quarto, se entretinha com uma cuia de farinha seca e água, o nariz escorrendo esperava sua vez ao peito, mas não sobraria nenhum pingo de leite, só o consolo.

Abotoou a camisa rasgada que usava para a lida, colocou a palha ainda molhada do chapéu sobre a cabeça. Aquele era o seu cheiro, o cheiro de suor, o cheiro da palha quase podre, um cheiro ardido de entre pernas. Bebeu um copo d’água que tirou do pote direto com o caneco de alumínio amassado, um restinho escorreu pelo canto da boca, a barba por fazer. Tomou um café ralo em pé, no mesmo tibungo. Por fim, João Mata-Vaca virou, pegou a foice e saiu.

O sol pintava de vermelho as nuvens esparsas. As chinelas furadas deixavam que João sentisse o chão pedregoso nos pés rachados, aquela terra inerte que João machucava e que se vingava dele todos os dias, semanas, meses, até que, de tanto ele insistir, de tanto ele cavar, de tanto bater com a chibanca, de tanto esfolar as mãos e lascar as unhas, enfim caía água do céu e brotava um verde incerto e parco. João sempre pensava que se chovia pouco era porque ele fez pouco no derradeiro ano. Mata-Vaca era trabalhador e não esperava muita chuva para preparar o roçado. Para ele, era o trabalho que trazia a chuva, era lavrando que acordava a terra dura, a terra mulher seca, a terra dura que depois de molhada rompia em um cio macio e fértil.

A primeira mulher dele bebeu veneno, era fraca do juízo. Os quatro filhos da doida saíram pelo mundo. João sabia deles não. Às vezes chegava uma notícia. Ficaram longe. Rio. São Paulo. Sabia não. Sabia que tinha que escavacar a terra, lavrar. Vez por outra aparecia uma cerca para fazer e ele fazia, um gado para ferrar e ele ferrava, uma rês para buscar e ele ia. Não gostava mais da cachaça. Cansou. Quando bebia batia na mulher, os meninos choravam. Então, batia nos meninos também. Muita confusão, tinha mais idade não. A mulher, mesmo apanhando, dizia que ele só era valente dentro de casa, queria ver ele bater em homem, que o João era um bosta, um Mata-Vaca. De tão bêbado o João não conseguia bater muito, quase sempre a mulher e as crianças corriam para o juremal e só voltavam quando o João caia desacordado.

Estava quieto o João. Feliz com a segunda mulher, mulherzinha nova que não tinha onde morar e foi viver com ele. Dizia o povo que ela fazia a vida pelo Carrascal. João não ligava, fosse atentar para tudo que diziam ia ficar doido e morrer como a primeira mulher. A mulherzinha estava ali, cuidava dos meninos, fazia o de comer. Emprenhou ligeiro, depois outro e outro e mais outro. Os meninos eram a cara dele e não se falou mais na vida do Carrascal. Estava bom. João gostava dos pequenos, ria deles aprendendo a andar. Quando João se acocorava na boca da noite para enrolar o cigarro de palha, deixava o mais velho lamber o papel e, às vezes, apertar o fumo. Os meninos ficavam perto olhando a fumaça que João soltava pelas narinas largas e, quando começavam a chorar por qualquer motivo, João espantava eles com uma abanada de braço, sem se levantar, como quem espanta mosca. Espalmava a manzorra onde batesse, nas costas, no rosto, nas pernas, e um menino saia chorando com os dedos de João impressos vermelhos na pele seca.

Hoje o Mata-Vaca ia fazer um serviço de cerca pro coronel Hermógenes. Quando chegou no sítio, o Abílio, feitor do coronel, estava escorado na cerca, cigarro no bico, a barriga escorrendo pelo cós da calça. A catinga de álcool dava um cheiro ardido em volta. Gritou pro João:

- Mata-Vaca, filha da puta, passa aqui por baixo da cerca, ligeirinho, negro velho! O coronel quer o serviço terminado hoje!
Mata-Vaca prontamente se abaixou, arrastando-se pelo chão, quase lambendo o couro sujo de esterco das botas do Abílio, que não teve a decência de se afastar. Encostou a foice e começou o serviço. Ia cavando com o pé de cabra, enquanto os outros enfiavam as estacas e encalcavam a terra. João tinha olho bom, deixava os paus linheiros como ninguém, era dele, nasceu assim, ninguém o ensinou, batia o mesmo espaço entre as estacas e os mourões. João era calado, não conversava, produzia bem. E o Abílio ficava gracejando, puxando conversa, insultando com um e com outro, reclamando do serviço.

- João, seu corno, eu comi muito aquela tua mulherzinha, na época do Carrascal! - Abílio ria sarcástico, os peões troçavam e o João calado, parecia que não era com ele, o mesmo olhar vago, o suor escorrendo pelo rosto enquanto os braços finos e rijos, quase esqueléticos, subiam e desciam cavando mais um buraco, a expressão perdida no subir e descer do ferro, a terra dura que aos poucos de abria.

- Traz o mourão, Zé Coxa! – Era o João chamando.

O Mata-Vaca parecia não escutar e seguia cavando um buraco depois do outro.

- Era até gostosa aquela mulherzinha, mas tu pegou só o resto, Mata-Vaca! Já estava sambada. - O Abílio arquejava encostado em um mourão, suando álcool.

João Mata-Vaca pegou a foice para aparar a ponta do mourão.

- Segura, Zé!

A foice desceu com força no pescoço de Abílio, pegou meio enviesado, a ponta da lâmina recurvada rasgou-lhe também o beiço. O sangue esguichou em cima do João e do Zé Coxa. O corpanzil de Abílio caiu pesado se debatendo, os olhos se revirando, aos poucos aquela massa de carne foi se acalmando, se acalmando, só a perna tremia, o pé num último estertor, mais nada, o sangue encarnado quase preto encharcando a terra seca. João já tinha matado de pau, nunca de foice. Mas só bicho.

Tudo se fez silêncio, os peões olhavam aterrados, mas os barulhos da mata eram os mesmos, uma rolinha cascavel piava ao longe, o som cortando com dificuldade o ar doce e pesado feito ferro. João, com o mesmo olhar perdido, os braços trêmulos caídos, fitava a massa de carne que era Abílio, um cheiro doce de ferro e álcool impregnou tudo em volta, o sangue molhando seus pés, grudando nos seus dedos, não sabia porque tinha feito aquilo. A primeira coisa que pensou foi no seu nome: João Mata-Vaca.


Tudo que queria era estar acocorado no terreiro de casa e acender um cigarro de palha.