Escrever pode mudar tudo.


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O Direito, esse desconhecido.


Quando escolhi o Direito, não sabia ao certo o que era o Direito. A faculdade me ensinou um pouco, o magistratura e a academia têm me ensinado muito. O trabalho diuturno de descoberta das normas, de interpretação dos fatos, de argumentação, de procurar a resposta, a melhor resposta, o melhor argumento, de procurar sem descanso a solução mais justa para o caso. É isso que fazemos nós, os juristas: os advogados públicos e privados, os juízes, os promotores. Dia após dia.
Meu pai dizia que o Direito é difícil. Muito difícil. Mais que difícil o Direito é frustrante. Uma frustração boa, algumas vezes desconfortável, mas sempre estimulante e desafiadora. Aqueles que vivem do Direito e com o Direito convivem todos os dias com o desconhecido: uma nova interpretação, uma legislação nova, o último precedente do Supremo, o cancelamento daquela súmula do STJ, a superação do entendimento da TNU. E sempre um argumento novo, e sempre a surpresa.
Conviver com o desconhecido é assombroso. Trabalho sisífico. Posso estar enganado, mas não lembro de muitas profissões em que o trabalho do profissional seja estudar, ler, interpretar e reinterpretar textos e contextos. Ao contrário do que pensam alguns, o Direito não é meramente uma técnica de aplicação da Lei. Fosse uma técnica poderíamos aprendê-la, dominá-la e pronto! Uma vez que soubéssemos a receita, repeti-la-íamos e eis o bolo, mais um. Uma falha na execução aqui e acolá, um bolo mais doce, outro mais pesado, outro dia maior atenção e um bolo mais macio, mas sempre o mesmo bolo, sempre a mesma receita, sempre a mesma técnica. Não, não. Nada é tão simples.
O Direito envolve criação e descobrimento à custa de muito estudo, leitura e dedicação. Como costumo dizer aos alunos, quem quiser trabalhar com o Direito, passará o resto dos seus dias lendo e escrevendo, o que pode ser o paraíso para alguns, mas um pesadelo para outros. Muitas pessoas não sabem ao certo o que os juízes e advogados fazem. Bom, se estão fazendo certo, em grande parte do tempo o que fazem é estudar.
Trabalhar com o Direito é estudar o Direito à exaustão e, ainda assim, debater-se todos os dias com os próprios limites, com as fronteiras do que ainda não sabemos, do que ainda não criamos. Trabalhar com o Direito é tentar entender, interpretar do modo mais adequado, uniformizar. Mas nada disso é feito sozinho, o que seria bem mais fácil. E muito mais perigoso. Fazemos isso a muitas mãos, argumentado e contra-argumentando, testando nossos pontos de vista, convencendo e sendo convencidos. Nossa interpretação será sempre desafiada e submetida a um novo teste. Replicamos.
A Justiça nos escapa. Lá vamos nós de novo, ler mais uma vez o dispositivo legal. Será que é isso mesmo que diz a Lei? Será que é isso mesmo que a Lei quis dizer? É isso mesmo que a Lei deve dizer? Interpretar novamente o precedente, buscar a filigrana, fazer da filigrana a pedra angular e interpretar o caso de modo diferente, a uma nova luz, uma luz que seja capaz de descobrir a Justiça.
Ontem participei mais uma vez de uma sessão da Turma Regional de Uniformização e, como acontece também nas sessões da Turma Recursal e todos os dias, essas emoções me vieram novamente, mas de modo mais agudo. Nove colegas, além do presidente, todos afiadíssimos, preparadíssimos, alguns que conheci há mais de dez anos, ainda no concurso. Todos prontos para testar as interpretações e argumentos uns dos outros. Uma arena argumentativa onde, ao menor deslize, qualquer um será sacrificado no altar da Justiça.
Sempre saio cansado, algumas vezes frustrado frente a esse desconhecido Direito, mas também saio leve e com a sensação do dever cumprido. Levo comigo algumas certezas. Sabemos muito pouco, mas isso não é motivo para desesperança. A Justiça, como as estrelas, é inalcançável, mas todas as noites as estrelas iluminam os homens. Fiz a escolha certa. Falo da escolha profissional. Tenho medo dos juízes que têm absoluta certeza de suas interpretações e decisões.
Nagibe Jorge

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Um Abismo Nos Separa

É difícil definir um bom conto. É extremamente difícil escrever um bom conto. Porque um bom conto é uma estória muito curta com começo, meio e fim bem definidos e que seja capaz de despedaçar o leitor, emocionar de uma maneira inusitada, nova e surpreendente. Uma emoção que nos domina e toma de assalto, de tal modo que é somente pouco tempo depois que acabamos de lê-lo que percebemos o efeito, como uma lâmina afiada que nos perfura. Primeiro vemos o sangue, depois sentimos o seu cheiro, só então vem a dor. O conto é uma dor de trás para a frente. Pode ser raiva, amor, arrebatamento, felicidade, compaixão, tristeza, mas as emoções dos contos nos derrubam sem percebermos. Se for um bom conto, será assim. O conto é algo curto e impactante. Pode ser como uma dose de cachaça que se bebe de uma vez ou como uma dose de conhaque que se saboreia aos poucos, mas é sempre algo intenso e curto.
O romance não, o romance é outra viagem. É uma garrafa de vinho que se saboreia durante muito tempo. Um romance é uma tarde inteira bebendo cerveja e jogando conversa fora com os amigos, resolvendo todos os problemas do mundo. O conto é agora. É urgente. Ainda assim, essa não é uma definição precisa porque o conto pode ser tudo ou nada, mas deve fazer algum sentido, ainda que esse sentido seja apenas uma sombra e nos escape, ou fique por muito tempo a nos rondar.
Se for capaz de impactar, deixar um gosto de queimado na garganta, descer arrombando o peito e ainda assim deixar um sabor permanente, talvez um certo travo, nada que seja doce ou amargo demais. Pronto! Acho que esse será um bom conto. Escrever um conto assim é uma graça. É quase impossível. Mas tentar escrever um conto assim, é muito divertido.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Vômito


Às vezes, sinto uma necessidade visceral de escrever. É cíclico, como o ciclo menstrual. Mas nem sempre demora trinta dias. Podem ser ciclos de um dia. Apenas um dia sem escrever desencadeia tudo. Podem ser ciclos de quinze, de vinte, de sessenta dias. O fato é que há ciclos, como o ciclo menstrual, que vem acompanhado de dores e purifica o corpo. De tempos em tempos sinto uma necessidade visceral de escrever. Algo que faz com que minha cabeça doa por dias seguidos, como se alguma coisa quisesse sair de dentro. É uma dor difusa, por trás dos olhos, nas têmporas, na maxila, nos dentes, em todo o nervo trigêmeo. Pode se manifestar de um só lado da cabeça com reflexos no estômago. Ânsias de vômito. É como se eu precisasse vomitar palavras em qualquer papel. Ainda que sejam coisas desconexas, como isto que escrevo agora.

Mas é preciso também que alguém leia. Sem o leitor não há o que escreve, o escritor. A escrita é um ato que só se completa na leitura do outro. Enquanto escrevo, as palavras estão sempre ainda incompletas. Elas só alcançam completamente o sentido quando o outro lê. E não sei se é uma boa ideia deixar que leiam coisas desconexas em um blog da internet que qualquer pessoa pode acessar. Porque os amigos, os amigos de verdade, entendem esses acessos, mas as pessoas que não te conhecem, as pessoas que te julgam pelas aparências, pelas fotos no facebook, pelo seus trabalhos, pelas suas sentenças, pelas decisões, pelas aulas, as pessoas que te julgam pelas opiniões sempre tão bem ponderadas e pensadas, o que essas pessoas pensarão quando o texto que sai assim em fluxo, como um vômito, é publicado?

Tenho certeza que não é boa ideia publica-lo, mas quem consegue controlar o vômito? O suco gástrico que sobe queimando o esôfago e abrindo todos os canais de maneira urgente? Quem consegue controlar a necessidade de botar pra fora?

Preciso de uma Neosaldina. Uma não, duas. Neosaldina devo escrever com letra maiúscula. Uma substância capaz de aplacar minha dor de cabeça, como o sol bem forte dissipa o nevoeiro e faz tudo claro e nítido, deve sempre ser escrita com a inicial maiúscula. Viva a indústria farmacêutica! Viva a cafeína! O que seria de mim sem a dipirona? Precisaria escrever bem mais. E me falta tempo para escrever. Como me falta tempo, tomo uma Neosaldina. Uma não, duas.

O pior desses momentos é que não percebo a origem do incômodo. Uma cegueira, uma debilidade intelectual crônica me impedem de conhecer a origem do incômodo. Fico rodando e rodando. No dia seguinte, dor de cabeça. Leio e me angustio com a leitura. Delicio-me com a leitura. Empanturro-me. Mas a leitura não resolve porque não vomito. O algo que preciso botar fora continua lá. Como me angustio com a leitura! É que o que leio é perfeito demais, é bom demais para que eu consiga emular. E tenho medo de vomitar coisas podres. As pessoas que escrevem são jovens demais. Como podem ser tão jovens e escrever tão bem!?


Então vomito e as palavras saem assim, esparramadas no papel, urgentes, azedas como um suco gástrico há muito tempo guardado que me ulcerava por dentro.  Basta isso para me acalmar. Uma página em branco, algumas palavras vomitadas. Pronto, já vai melhorar. Muito obrigado por ter lido até aqui. É aqui, no final, exatamente agora, que você me faz escritor e alivia a minha dor.

Nagibe Jorge

domingo, 5 de abril de 2015

Conversa de Páscoa

O menino remexeu a terra com um pequeno graveto, pensativo. De repente, levantou a fronte, quase sem tirar as mãos do chão.
- Mas, pai... como é que Deus salvou o mundo? Ele precisava deixar o filho morrer para salvar o mundo? Ele não é Deus?
O pai, que se balançava em uma cadeira ao lado, baixou o livro.
- Hein?
- Ele não era Deus, pai? Deus pode tudo!
O homem olhou para as nuvens carregadas que tantas vezes anunciavam chuva e não choviam. Lembrou de seu próprio pai e do dia em que fez uma pergunta parecida. O que é salvar? Como o mundo está salvo se todos os dias vemos tanta maldade e tantas desgraças?
- Pai! – o menino insistia, uma insistência bem típica dos seus 10 anos.
- Salvar é dar sentido, filho. Salvar é dar sentido.
O menino olhava meio perplexo. Voltou a cavoucar a terra.
- Esse buraco que você está fazendo aí. Daqui a pouco vai ser esquecido, vai chover, a terra vai se acumular dentro dele e amanhã não vamos saber nem onde era o buraco. Mas nós podemos dar sentido a ele. Poderíamos, por exemplo, enterrar aí um diamante precioso. Então dificilmente esqueceríamos. Esse pequeno trabalho que você está fazendo passaria a ser tremendamente importante. Saberíamos que o diamante está aí, marcaríamos o lugar e lembraríamos dele porque ele contém uma pedra preciosa.
- E Deus fez isso, foi?
O homem não sabia ao certo se Deus fez bem isso, mas resolveu arriscar e dizer da melhor forma como tudo lhe parecia.
- Quando Deus permitiu que seu único filho fosse atingido pelo sofrimento e morresse, Deus deu sentido ao nosso próprio sofrimento, à nossa morte. É como se todo sofrimento humano fosse o mesmo. Quando vemos o céu, vemos o mesmo céu. Não importa as distâncias, todo ser humano tem mais ou menos a mesma visão do céu. Todos sabemos como são as nuvens. Na Inglaterra, onde sua tia mora, as nuvens não são muito diferentes, nem as estrelas. Você lembra? Com o sofrimento é igual. Todos sofremos uma parte do mesmo sofrimento, assim como vemos todos uma parte do mesmo céu. Deus sofre conosco o mesmo sofrimento e morre conosco a mesma morte. Nosso sofrimento não é em vão, tem sentido.
- Mas o sofrimento é péssimo, né pai? Não dava para Deus acabar com o mal de uma vez?
O pai riu.

- Não sei, meu filho, não sei... Se soubéssemos, Deus não seria Deus. A única coisa que sei é que a vida é feita de alegrias e tristezas. Ninguém passa pela vida sem sofrer. A única coisa que sei é que, quando estivermos tristes, Jesus estará lá, sofrendo conosco e nos ajudando a encontrar sentido.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Qual o Enigma dos Livros?

Cortei na carne. Acho que descartei mais de duzentos, talvez trezentos. Não sei, desisti de contar. Comecei fazendo uma faxina. Não uma simples faxina. Uma senhora faxina. As aranhas estavam dominando tudo, apareciam com suas teias por todos os lados. No começo foram bem vindas. Estavam comendo as traças e as traças estavam comendo os livros. Depois saiu tudo do controle. Parecia haver espaço e comida para as traças e para as aranhas e quanto mais traças, mais aranhas.

Chamei uma especialista. Especialista em faxinas, não em traças ou em aranhas. Seria simples. Era retirar os livros das estantes, limpar um a um, limpar as prateleiras e recolocar os livros. Não podia ser mais simples. Ela chegou com ânimo. Demorou um dia inteiro na limpeza. Ficou ótimo; ou melhor, ficaria ótimo se eu não tivesse tido a péssima ideia de espalhar naftalina entre os livros com o fim de repelir as aranhas e as traças. Ninguém poderia aguentar aquele cheiro. Era simplesmente insuportável. Eu não podia mais trabalhar, usar o gabinete, estar nele, ler, passar o tempo. Era como estar em uma nuvem de naftalina. Pesquisei na internet meio displicentemente sobre o naftaleno, falta do que fazer. Quem procura o que quer, acha o que não quer. Naftaleno: um derivado do petróleo que pode ser tóxico, talvez cancerígeno. Foi o bastante. Eu não estava disposto a correr o risco. Era preciso retirar todas as bolinhas de naftalina escondidas naquele amontoado de livros. Rápido!

A especialista havia sido hábil em escondê-las. Como um jogo de caça ao tesouro às avessas, saí farejando as prateleiras, retirando os livros recém limpos, bagunçando o que depois de muito tempo estava organizado com certa ordem. Todo o processo demorou alguns dias. No primeiro dia consegui achar e dei fim a cerca de quatorze bolinhas de naftalina, mas o cheiro continuava. Passava na porta do gabinete e lembrava do guarda-roupa da minha avó, das gaveta da minha tia e de baratas. Naftalina me lembra baratas. Continuei a busca durante muitos dias, sempre nas horas vagas. Como um perdigueiro, continuei farejando as gavetas, os armários, os papéis, achei mais sete ou oito bolinhas a razão de duas ou três por dia. Depois de mais uns dias, tudo parecia ter chegado ao fim.

Acho que não havia mais naftalina. Finalmente o gabinete seria declarado naftalina free, mas os livros estavam um pandemônio, espalhados pelo chão, fora de ordem, empilhados por todos os lados, por todos os cantos, tudo virou prateleira, eu não conseguia mais achar minha mesa de estudo. Além disso, descobri que a especialista estava mais empenhada em limpar os móveis que propriamente os livros ou em acabar com as aranhas, com os cupins ou com as traças. Os livros ainda estavam empoeirados. Talvez tudo aquilo fosse, afinal, um grande trabalho de Sísifo. Alguns dias depois da limpeza, as aranhas estavam de volta e havia pequenas asas por todos os cantos. Na época das chuvas, os cupins se transformam em formigas de asas, saem não sei de onde e caem nas teias, algumas conseguem escapam por entre os livros.

Foi quando bateu a crise. A verdade é que estava cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a limpar os livros, enquanto eu estava cada vez mais disposto a comprá-los. Comprá-los sem garantias que serão lidos um dia. É que há livros que me deixam menos ansioso só de tê-los por perto. Vejo-os na estante e acredito, por um instante, que algum dia poderei lê-los, conversar com eles, conhecê-los melhor. O conhecimento ali guardado, de algum modo, estaria acessível e protegido por mim. Tenho certeza, como toda pessoa sensata, que morrerei sem ter lido nem a décima parte do que gostaria. Como também é certo que às portas da morte terei esquecido de quase tudo que li, das melhores conversas com os melhores amigos e de muitos bons momentos. O que me leva a crer que não lemos para lembrar, assim como não vivemos para a memória, lemos e vivemos pelo momento, pelo instante fugidio em que alguém ou alguma coisa nos comunica algo, nos emociona e temos a certeza de que não estamos sozinhos, alguém é capaz de nos compreender e sentir igual a nós.

Nos piores momentos chego a pensar que os livros me engolirão, como a Esfinge. Decifra-me ou te devoro. E sou incapaz de decifrar esse enigma dos livros, do amor por eles, da angustia  daquelas milhões de palavras fechadas entre as capas que querem todas gritar ao mesmo tempo, da urgência de ler algum outro livro quando temos qualquer um nas mãos, da tranquilidade de tê-los perto. Precisava dominá-los ou seria dominado por eles. Quantos livros são necessários a um homem? Resolvi limpá-los e organizá-los eu mesmo. Nada de especialistas. Não delegaria nada. Catalogar. Remover a poeira de um por um. Surpreendi-me com muitos grifados e marcados. Teriam sido lidos? Onde estava a memória sobre aquelas folhas? A que pensamentos e reflexões teriam servido? Com alguns, o contato direto me fazia reviver as mesmas impressões e emoções que me despertaram algum dia. Seriam as mesmas? A memória nos engana. Lembro a fisionomia, a personalidade, o jeito de andar de um ou outra personagem, mas me escapa o nome. Lembro vagamente uma teoria ou argumento, mas me escapa o filósofo, o jurista, o autor, a própria obra.

A medida que os organizava precisava encontrar uma resposta satisfatória para a perguntar acusatória: por que acumular tantos livros? Não fazia sentido. Resolvi descartar o maior número possível. Jogava-os em uma grande pilha, como se fosse para serem queimados. Já havia feito isso antes. Mas agora não seriam apenas os ruins, os fracos, os inúteis, os imprestáveis. Era preciso cortar na carne. Encontrar espaço. Jogar fora, doar, vender tudo que não fosse absolutamente essencial. A Esfinge a espreita pronta para me devorar. Terminei exausto. No dia seguinte ainda salvei muitos da pilha do descarte. Muitos que eu ainda preciso ter por perto. Qual o enigma dos livros?