Escrever pode mudar tudo.


sábado, 3 de maio de 2014

O Presente


Faltavam cinco minutos para o meio-dia quando o celular tocou.
- Alô.
- Lola, Manuel. Poderíamos almoçar na Monsenhor Tabosa? Estou cá a fazer umas compras. Havíamos combinado no Shopping, mas como cá já estou...
Era o primeiro encontro deles. Conheceram-se na internet, amizade nem tão improvável entre uma brasileira e um português. Outros dois patrícios já haviam passado pelos seus lençóis, cada um deixando suas marcas. Cicatrizes que não doíam mais. Não podia negar que não estivesse ansiosa. Já o conhecia de fotos, sabia que ele tinha três filhos do primeiro casamento e um pouco mais de cinqüenta anos, sabia dos seus cabelos grisalhos e até da sua barriga pronunciada. Dividiam uma certa intimidade que, como ela já experienciara, inexplicavelmente desaparece com o encontro pessoal. Estar com alguém é diferente. Há sempre um jeito de olhar, um movimento de ombros, um jeito de posicionar os dedos, o abrir e fechar da boca que é capaz de dizer muito mais que as mensagens eletrônicas. E tanto quanto revela, oculta.
- Por mim tudo bem. Onde você está?
Concordou a contragosto. Já estava a meio caminho do Shopping Center, seria preciso voltar. Gasolina cara, carro sem ar-condicionado e o calorão do Ceará. Além disso, convenhamos, a Monsenhor Tabosa não era lugar para um primeiro encontro. Aquele apinhado de lojas sem qualquer sofisticação, aquela gente suada, aquele sol que não dava trégua.
Aos trinta e nove anos Lola pensava na vida como uma sucessão de dias, alguns bons, outros ruins. Não esperava muito, não fazia planos, se contentava com os pequenos prazeres do dia-a-dia: a novela da noite, o chope da sexta-feira, os amores das amigas, a balada no fim-de-semana. Mas, como uma adolescente, ainda sonhava com o príncipe encantado. Idealizava-o perfeito, alto, másculo, forte, rico, muito além das possibilidades do real, conquanto já houvesse, há algum tempo, dispensado o cavalo branco. Reservava para o amor todos os seus anseios e sonhos, tudo que a aridez do dia-a-dia não lhe era capaz de dar. E ali estava ela novamente, um frêmito diante do desconhecido, outra chance. Talvez desta vez. Seria o Manuel?
Encontrou-o de pé debaixo de uma palmeira. Refestelando-se sob o mesmo sol que aqueceu o sonho de seus antepassados quinhentos anos atrás, esperava sua índia, sua Iracema. Seus ossos ainda traziam o cinza do inverno português, que esperava expurgar nos seios daquela brasileirinha. Estava quase feliz, quase contente de almoçar com uma mulher mais jovem, com quem poderia compartilhar alguns bons momentos durante sua estadia. Fariam um almoço rápido, depois algumas compras sob o sol, sempre sob o sol, queria o sol, queria o calor dos braços e pernas brasileiras, nada podia ser mais revigorante. Quando a viu, ela lhe pareceu um pouco mais velha que nas fotos, um pouco mais sem graça. Talvez o uniforme do trabalho, o suor que lhe desmanchava a maquiagem. Ofereceu um sorriso cortês, quase entusiasmado.
Ela estava um pouco sarapantada. O calor, o sutiã que lhe apertava, o ruge-ruge de gente, ambulantes pelas calçadas, a buzina dos carros, como poderia mergulhar no momento? Ele lhe pareceu patético segurando os pacotes à sombra da palmeira, a camisa encharcada de suor. Almoçaram em um restaurante simples e quente. Um self-service simples demais, na verdade. Uma refeição mais demorada e formal do que ele gostaria, mais barata e deselegante do que ela sonhara. Falaram sobre o tempo, a cidade, a viagem. Tudo o mais ficou para o jantar, ela precisava voltar para o trabalho. Atender telefonemas, receber pessoas, marcar e desmarcar reuniões, enviar comunicados; o secretariado tem dessas desvantagens, lhe faz imprescindível no local de trabalho. Não podia simplesmente dar ordens, resolver pelo telefone ou pela internet, ela recebia ordens.
À noite foi sushi e sashimi. Era um restaurante japonês charmoso e bem decorado, iluminado à meia luz, este sim, digno de um primeiro encontro. Comeram devagar, bebiam vinho. A textura macia do salmão e o leve torpor do vinho envolviam-na em uma atmosfera sensual e lassa, de repente sentia-se uma fêmea completamente dona de si. Ninguém poderia lhe fazer crer naquele momento que o príncipe encantado não existisse.
- Prometa que não será um cafajeste comigo – Ela pediu.
Lola pensou que talvez enxergasse melhor à noite. Ele era, sem dúvida, muitíssimo delicado, nada de patético. Seus cabelos grisalhos transmitiam segurança. Apesar da barriga protuberante, seus braços ainda eram bem fortes. Cuidaria dos filhos dele, não lhe parecia uma má idéia morar em Portugal.
Depois da sobremesa ele fez aparecer um lindo presente. O pacote dourado amarrado com laço de fita fez brilhar os olhos de Lola. Era um presente especial. Não se podia fazer um embrulho assim em Fortaleza. Ele o trouxera da Europa, sem dúvida. Mais um pouco e teria ficado embaraçada. Retirou a fita com cuidado e rasgou o papel em um estrépito grave. Desde criança acreditava que lhe dava muita sorte rasgar os papéis de presente. Descortinou-se uma linda caixa de cetim azul. Uma jóia? Já uma joia!? Abriu-a.
Um porta-perfume de louça com o brasão de Portugal. Procurava entender... Tentava concatenar as idéia e disfarçar o desapontamento.
- Muito obrigada, Manuel... – gaguejou – Você é muito delicado...
Manuel deliciava-se com o brilho dos olhos de Lola, sua surpresa, sua ansiedade, a sofreguidão mal disfarçada com que abriu o presente. O porta-perfume que havia sido de sua tia Amélia, havia tido seu efeito. Era uma peça de toucador linda, antiga, valiosa, como não se via no Brasil, como não se vendia mais: uma relíquia. Podia ter certeza que a conquistara e que a noite e a estadia no Brasil seriam maravilhosas, emaranhando-se em calorosos braços e pernas brasileiras. Lola sorria lânguida, não recusou quando Manuel segurou suas mãos com um olhar vitorioso, certo de que a havia subjugado. Ele apertava de um jeito inconveniente a junção de seus dedos com as palmas das mãos. Finalmente foram para o hotel, no carro dela.
Tinha a forma de um falo. Um falo branco, bojudo e liso, com uma tampa que parecia uma cúpula bizantina, circundada por uma linha dourada. Meu Deus, por que um porta-perfume? Por que tão ricamente embalado? Não se embala assim um presente tão inexpressivo. Era injusto com ela. O papel dourado lhe permitira sonhar com um príncipe, com um amor de verdade. De que lhe serviria, afinal, um porta-perfume de toucador? Ela era uma mulher moderna. Não tinha ainda quarenta anos. Daria, pelo menos, para carregá-lo na bolsa? Impossível sem derramar o perfume. Podia sentir o cheiro das irmãs francesas dele, as duas na casa dos setenta.
- Não vai subir? Vamos tomar alguma coisa. Quem sabe conversamos um pouco mais... – Disse ele utilizando-se de todo seu poder de persuasão.
- Estou um pouco cansada, Manuel. – Foi o que Lola conseguiu dizer. Mandou-lhe um beijo que foi da boca pelos dedos desfazendo-se em um aceno.
O encanto se desfez. Deitou-se sozinha em casa, o travesseiro entre as pernas. Custou a dormir. Um porta-perfume!? De louça!?