Escrever pode mudar tudo.


sábado, 30 de março de 2019

E você? Qual a Sua Verdade?


Nesses tempos de pós-verdade, nunca a Verdade foi tão importante e tão incompreendida. A maioria de nós pensa a Verdade como algo precioso, absoluto, que devemos impor às outras pessoas, como um trator. Temos o direito sagrado – mais! – temos o dever de nos ofender, de nos magoar, de reagir quando a Verdade não é respeitada. É nossa obrigação lutar e defender a Verdade.

A Verdade, contudo, só existe em comunhão com o Outro. Não há algo como a minha Verdade diferente da Verdade do Outro. Só existe a minha Verdade que convive, respeita, acolhe, conversa com a Verdade do Outro porque a Verdade nunca exclui, sempre abarca. A Verdade é o Absoluto.

Talvez o modo mais feliz de encontrar a Verdade seja pela poesia. É muito significativo que, no Brasil, se leia tão pouco poesia e, quase como consequência, estejamos tão conflagrados, intolerantes e amargos. A Poesia é própria Verdade. Tudo o mais é simulacro. Quando digo Poesia não me refiro só aos poemas, refiro-me a tudo aquilo que nos acende. Estamos diante da poesia quando percebemos que estamos plenamente vivos. Acesos.

Alguns poemas me fazem isso. Na verdade, muitos poemas me fazem isso. É uma sensação maravilhosa. O amor me faz isso. A corrida me faz isso. Escrever me faz isso. É uma sensação indescritível. É a própria bem-aventurança. Sei que estou diante da Verdade, da minha Verdade, da Verdade que eu vivi para descobrir, da Verdade que vou continuar desvelando até o final. Não é a Verdade das religiões, das doutrinas, das ideologias, das ideias desse ou daquele filósofo. É a Verdade que eu reconheço. Sei que é Ela. Quando me deparo com ela, acendo. Incendeio.

A minha Verdade não pode excluir a Verdade do Outro. Eu descobri que Ela vive para o Outro, Ela se descobre no Outro. A minha Verdade se torna Verdade na Verdade do Outro, ainda que o Outro não goste de correr, não saiba ler, não entenda nada de poesia ou até mesmo não tenha encontrado o amor.

O Outro, por absurdo que seja, por detestável que seja, é sempre maravilhoso. O Outro é sempre espantoso porque, com tudo que possa ter de intolerável, ele também carrega a Verdade, ainda que a carregue escondida, esquecida, ainda que ele (o Outro) não tenha sido capaz de acessá-la, de descobri-la, de vivê-la. Por isso é preciso respeitar o Outro, conviver com o Outro, compreendê-lo, amá-lo, porque me assustando com ele, maravilho-me com a Verdade que existe em mim e está escondida nele ou que se manifesta nele de modo diferente.

Descobrir a própria Verdade é a razão pela qual vivemos. Quando a encontramos, nada mais importa. Chegamos. Na verdade, tudo importa. Encontramos. Só podemos descobrir a nossa Verdade quando respeitamos a Verdade que se manifesta no Outro.

Descobrir a própria Verdade é coisa simples, nada tem de mirabolante. É saber, por exemplo, que gosto de azul. Não posso justificar isso, só me resta aceitar. Gosto de Caetano Veloso. Quando leio poesia, quando escuto Belchior ou Ednardo, quando escrevo, tudo faz sentido. Não sei como, nem porquê. Sou eu assim. Nada precisa ser justificado, nada precisa ser provado. Eu me aceito. Eu sou e respeito o Outro como ele é.

E você? Qual a sua Verdade?

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal. Professor. Autor de O Amor, A Vida e Os Dias: 50 poemas e um breviário.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Todo Poder às Mulheres


As mulheres sofrem e muitas ainda não compreendem por que sofrem. A castração feminina (e do feminino) começa em casa, nos comentários, nos murmúrios, nas fofocas e, grande parte das vezes, termina em casa e no trabalho, na violência verbal, nos socos e pontapés, no feminicídio. No último ano, 4,7 milhões de mulheres foram agredidas fisicamente; 4.254 foram mortas, desses homicídios, 1.173 foram casos de feminicídio (quando o crime é motivado pela vítima ser mulher).

Muitos homens e muitas mulheres (!) ainda pretendem controlar o corpo, o pensamento e (pasmem!) até mesmo o sentimento das mulheres. Quando o homem trai, bem... foi mal, desculpe, é apenas um homem. Quando a mulher trai, é chamada de "vagabunda", às vezes pelo homem com quem se relacionou (!), quase sempre por outras mulheres (!).Vencemos a luta pelo divórcio em 1977, mas as mulheres ainda são socialmente apenadas quando se divorciam. As mulheres separadas ainda são vistas como ameaça por outras mulheres.

Quando era pequeno, lembro das pessoas sussurrando nas costas de mulheres muito queridas: "ela é divorciada", como se carregassem uma marca tenebrosa. Ainda outro dia, para minha absoluta tristeza, ouvi um comentário do tipo: "mas ele vai deixar ela viajar com a fulana, ela não é separada?". Oh Senhor! Tende piedade! Ela não sabe o que diz! A ignorância reina absoluta naquela cabecinha miúda.

Vivemos em um canto do planeta tão desgraçadamente atrasado que a amizade entre um homem e uma mulher é vista como coisa impossível, com desconfiança ou desaprovação. O que vão pensar? O que podem falar? Mulheres conversam com mulheres, homens conversam com homens. Nas reuniões sociais sentam-se em rodas distintas. Há assuntos de mulheres e assuntos de homens. Quando os homens são promíscuos em seus relacionamentos, bem... são homens. Quando as mulheres se relacionam com muitos homens, são "galinhas", "periguetes", são perigosas, desajustadas, coitadas.

Eis aí a origem da violência contra a mulher, dos insultos verbais, dos socos, dos chutes, dos espancamentos, das mortes. Se você se enquadra em algum dos padrões descritos acima, é duro dizer, mas infelizmente você também é responsável. Você é responsável por cada olhar de reprovação, por cada comentário maldoso, por cada julgamento. Acreditamos que as mulheres não podem isso, não podem aquilo, não podem falar alto, dizer palavrão, sentar de pernas abertas, não podem gritar quando gozam (as putas podem, as mulheres não). E as punimos severamente se elas ousam pensar e sentir de modo diverso do que lhes foi determinado pela sociedade patriarcal.

Ainda vivemos nas cavernas. Na África, todos os anos, cerca de 3 milhões de meninas e mulheres sofrem mutilação sexual, que consiste em amputar o clitóris e partes dos pequenos e grandes lábios da vulva (ONU, 2015). No ocidente, sequer entendemos direito como a mulher goza e como é o órgão genital feminino. Para explicações detalhadas, divertidas e estarrecedores vale a pena ler A Origem do Mundo: uma história da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, da quadrinista sueca Liv Strömquist.

Lembro que Jesus andava com as prostitutas. Ainda hoje as condenamos e denegrimos. Quantas não sofrem enredadas nas redes de prostituição! Quantas não sofrem por não ter o trabalho legalizado! É preciso, no dia de hoje, homenagear as prostitutas, esquecer por um instante a degradação moral que envolve o ato de vender o corpo, e lembrar, nem que seja por um instante, da necessidade, da dor e da doação sublime que é o ato de oferecer o próprio corpo.

Convivo com mulheres maravilhosas, aprendo muito com todas elas. Minha homenagem mais que especial à minha fantástica esposa, à minha filha extraordinária, à minha mãe, à minha sogra, às minhas irmãs, cunhadas, sobrinhas e primas. Minha homenagem às minhas professoras, alunas, colegas e amigas queridas. São todas exemplos para mim. As mulheres são fantásticas. Sofro com as mulheres e me maravilho com elas. Nada é tão lindo como uma mulher andando ou dançando, falando, cantando, discursando ou fazendo o que quiser, desde que seja livre.

Que um dia, todas as mulheres possam estar livres das amarras que lhe são impostas. Que elas possam pensar, sentir e fazer o que quiserem. Que possam amar e gozar como quiserem. Que possam mandar. Todo o poder às mulheres.


Nagibe Melo
Juiz Federal. Professor da UniChristus. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?



quinta-feira, 7 de março de 2019

Cinzas


O carnaval acabou. Mas como acabou!? Como pode!? Dá uma tristeza sem fim. Nada como o carnaval pra mostrar que tudo passa, que a vida é uma grande ilusão e que, na maior parte do tempo, nos deixamos enganar. Mas que ilusão gostosa! A euforia, a sensação de que, sim! Toda fantasia é possível. Sim! Nós podemos quase tudo ali de frente pros Transnacionais, meio embriagados, com os braços pra cima, as pernas cansadas de pular, enquanto o trompete, o tamborim, a guitarra, o baixo, a percussão, a bateria ensurdecem todos os quases e se´s.

Pessoas de todas as idades, de muita idade, de pouca idade, jovens já não tão jovens, cabelos brancos, cabelos tingidos, corpos malhados e peles flácidas se sacodem como a dizer em tom de desafio: vamos pra frente, ainda temos o carnaval, ainda temos a cerveja, hoje as mulheres estão dançando! E poucas coisas são tão belas quanto uma mulher dançando. A vida segue um pouco desajeitada na quarta-feira de cinzas, mas é de algum lugar bem lá no meio dessa euforia que muita coisa do que é humano faz sentido.

O carnaval nos infunde essa sensação fútil, quase ridícula, de potência. É ridículo aproveitar a vida como se, em grande parte das vezes, ela não fosse um sem sentido terrível e cruel. Mas aí a banda toca e a nossa euforia também sem sentido, nossos excessos também sem sentido, todo o nosso desejo de gozo parecem fincar um sentido bem lá no meio do desespero. Um sentido fútil, irônico, um sentido que nos grita ao ritmo do frevo: eis tudo, a vida é agora! Amanhã morremos e a vida segue sua sina, com seus erros, esperanças e vícios.

Hoje, ainda é terça. Por isso eu escuto Vida Boa, composta pelo nosso Fausto Nilo e pelo Armandinho (sim, o cara do trio elétrico) pela enésima vez, de novo, de novo e de novo. Foi a minha música do carnaval. E eu nem a conhecia! Desde sábado já a ouvi umas trocentas vezes, sempre na voz do Caetano Veloso. O Caetano canta carnaval como ninguém, canta tudo como ninguém. E tomo mais uma cerveja e fumo outro cigarro e outra cerveja. “Aonde o sonho vai, meu sonho vai / meus sonhos vão”. Amanhã é quarta-feira de cinzas, vou me consolar com a corrida, deixo de fumar mais uma vez e a vida volta com toda a sua caretice, com todas as obrigações, com todo seu cinza.

Na quarta-feira nos bate essa tristeza de termos feito cinzas de todas as nossas ilusões de potência e gozo. Mas tenho pra mim que, apesar da tristeza, alguma coisa nasce das cinzas, alguma coisa que diz “a vida é agora, amanhã morremos e, aí sim, tudo serão cinzas”.