Escrever pode mudar tudo.


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Natal Vem Vindo

O Natal vem vindo como o comercial da coca-cola, uma música alegre, muitas luzes, cores e, aos poucos, nos empurra para o lado, nos desloca um pouco fora de nós mesmos enquanto observamos felizes as luzinhas ou observamos as luzinhas felizes, a decoração, as árvores, os enfeites.

Procuramos nossos pais, irmãos, tios, primos, os amigos distantes e os mais próximos, os colegas de trabalho, renovamos aqueles velhos e repetidos votos desbotados como uma maneira de reafirmar para os outros nossa mais genuína felicidade, sim, somos felizes e gratos. Lembramos de todas as pessoas que não serão lembradas até o final do dia porque mesmo esse dia é curto para lembrar de tanta gente e nos invade um medo difuso e sermos também esquecidos e de magoá-las e nos esforçamos ao máximo para ligar para todos, uma mensagem, um olá, um “feliz natal”, qualquer coisa que diga para o outro que sim, nós estamos aqui e nos importamos.

É Natal, estamos todos felizes e queremos proclamar isso, sobretudo no facebook, e não queremos dar para nós mesmo a impressão de que esquecemos ou de que não nos importamos, afinal é só hoje, é hoje que precisamos lembrar, é hoje que não podemos esquecer ninguém, os presentes, um chocolate pelo menos, o amigo-secreto doce para não passar em branco.

Temos medo de passarmos em branco sem dizer para os outros que somos felizes e que nos importamos com a felicidade deles ainda que não nos importemos tanto assim, ou apenas na medida em que se importar nos torna mais felizes. E já não acreditamos mais em Papai Noel, nem na história do menino que nasceu há dois mil anos esquecido em uma manjedoura, no meio dos bichos, ainda que haja tantos meninos esquecidos ainda hoje. E só agora, justo hoje, nos lembramos das cestas que pretendíamos distribuir, mas o corre-corre diário nos impediu, impediu não, adiou, preferimos pensar que apenas adiou.

E, por favor, que hoje a televisão não nos venha com notícias tenebrosas de assaltos, chacinas e meninos que nasceram esquecidos, pois ainda temos que assar um peru, gelar um vinho, melhor dois ou três, pode ser que apareça mais alguém. Sempre aparece mais alguém na noite de Natal e como é bom acreditar que se importam conosco e que estarão ao nosso lado nos guiando como a estrela guiou os três reis magos para ver o menino que nasceu meio esquecido mas se tornou rei.

Finalmente, vamos dormir meio embriagados, meio desapontados. Como passou rápido! Chegamos a pensar que queríamos mais tempo para nos importar mais, para sermos mais felizes, para distribuir mais atenção e presentes e sorrisos, mas há sempre o que fazer, além disso a rotina nos dá mais segurança, e adormeceremos pensando na estrela que guiou os três reis e que está em algum lugar perdida no meio de tantas luzinhas piscando e pensamos no menino e como estava quieto e calmo o estábulo naquela noite de Natal e como todos estavam felizes e, de repente, tudo que queríamos era estar também naquele estábulo, mas alguma coisa nos empurrou para fora de nós mesmos.


domingo, 8 de dezembro de 2013

Henri Le Boursicaud

Nunca pensei que poderia encontrar Henri Le Boursicaud ali na praça onde caminho. Logo na primeira volta percebi que era ele: velhinho, barba branca, costas curvadas. Estava sentado sob a tenda do Emaús, recebendo doações juntamente com o Airton Barreto, um advogado cearense que mora no Pirambu e tem uma vida de trabalho dedicado aos pobres.

Dei mais algumas voltas, não sabia como abordá-lo. Caminhava com a Trycia e o Paulo. Não queria interromper o exercício, mas tinha medo que ele fosse embora. Não queria falar com ele rapidamente, um cumprimento aligeirado, e depois voltar a caminhar, queria estar com ele por um tempo. Havia mais alguém com eles, uma certa agitaçã, queria mais privacidade. Esperei. Mais uma volta. Mais outra.

Henri Le Boursicaud, o padre redentorista, considerado por muitos um louco, por outros um profeta; o padre que aos 45 anos fez a opção pelos pobres e fundou o Emaús Liberté, uma vertente de proposta mais radical que o Emaús International de Abbé Pierré; o velho que fala verdades duras com os olhos faiscantes: já disse diversas que a Igreja Católica, tal qual a conhecemos, irá acabar e se transformará em uma comunidade de comunidades; o francês bretão que, contra as ordens de seu governo, foi ao Iraque, durante a guerra de 2003, para apoiar os iranianos refugiados; o homem que, aos 75 anos, percorreu 1.500km, de Paris a Roma, a pé, para pedir reformas a João Paulo II. Estava ali.



Agora, ficaram só os dois. De vez em quando, Airton afastava-se um pouco para atender alguém que, de dentro do carro, entregava suas doações. Era a minha vez. Aproximei-me, cumprimentei o Airton, que já conhecia, de modo caloroso, e me dirigi ao Pe. Henri.

- Pe. Henri, vim aqui lhe prestar minha homenagem! Sorri. Apertei suas mãos macias olhando bem no fundo de seus olhos azuis emoldurados por um rosto de pele rósea e lisa. Aos noventa e quatro anos, as mãos trêmulas, seu olhar vivo, sua pele vermelha, seu nariz fino, sua barba branca, tudo nele resplandecia à juventude. Ele mal falava, mas parecia me entender. Agarrou meu braço com firmeza parecendo indicar a cadeira ao lado. Sentei-me.

Fiquei ali com ele, tentando captar o que ele diria, esperando uma palavra, um ensinamento. E ele calado, presente, olhava atento. Falávamos entre nós, Airton, eu, Trycia, Paulo. Criei coragem:

- E a oração, Pe. Henri?

- É o motor. O homem não faz nada sem a oração. A oração consiste em reconhecermos a todo instante que tudo que nos acontece é um presente amoroso de Deus.

- E o mais importante? Diga para ele o que é o mais importante. Airton interveio quase gritando para que ele ouvisse.

- Justiça! Não há amor sem justiça. Justiça! Ele bradava com uma energia que pensei ser característica dos bretões de sua estirpe ou muito própria do Espírito Santo. Os olhos arregalados. Uma rispidez e seriedade que, de repente, explodiam em um sorriso.

- Deus jamais se repete! – Apontou para mim com o olhar mais inquisitivo que acusador. Enérgico.

- Você é único! Você é única! – Apontava para Trycia – Nunca houve outro igual a você nem jamais haverá. Só você pode fazer e falar o que lhe é dado fazer e falar, por isso nunca se omita em defesa da Justiça!


Ficamos calados. Suas palavras ecoavam e, aos poucos, silenciavam sob o barulho da cidade e o canto dos pássaros. Em dado momento, me mostrou, em um de seus livros, uma foto de sua família. Sorriu um riso espontâneo, largo, quando lembrou o fato de que a mãe estava sentada e o pai em pé, na foto, para disfarçar a diferença de altura: o pai tinha 1,80m, a mãe era mignon. Trocava o português pelo francês, o francês pelo português, ia e voltava com o mesmo sotaque. Falou da morte da mãe, uma pequena bretã, firme, enérgica e teimosa, como ele, falou do pai, prisioneiro na Grande Guerra, e dos irmãos, falou do seminário onde foi morar aos 11 anos, da vontade de voltar para casa, da persistência. O dedo indicador tremia sobre a foto. Por fim, disse:

- Tous sont morts. Sorriu.

Fiquei mais um pouco. Estive ali com Henri Le Boursicaud. Depois me despedi, caminhei para casa pensando na Iracema e nos outros mendigos que vivem pela praça e em quantas vezes somos gentis com eles para não precisarmos ser justos, em quantas vezes doamos ao Emaús e a outras instituições de caridade para aliviarmos a consciência e não precisarmos pensar da maldita injustiça.



Curva

Linhas sinuosas
Caminhos sinuosos
Vidas sinuosas
Como tuas curvas sinuosas

Pensamentos sinuosos
Que se embaraçam
Em teus longos
Cabelos negros

A menor distância entre nós dois:
Uma curva
Por que não chego?