Escrever pode mudar tudo.


segunda-feira, 26 de julho de 2010

O Leitor

Acabei de ler O Leitor, de Bernhard Schlink. Bom livro, comovente. Não é grande literatura, o livro cresce a partir do meio. Do meio pro fim, o autor consegue criar belas frases, imagens profundamente impactantes, ainda ou porque singelas. Em algumas partes, no início, chega a ser tosco. Mas a trama como um todo é rica, complexamente humana e comovente. O autor deveria ter aprofundado alguns temas, mas optou por um distanciamento que lhe poupou talento e produziu um grande efeito. Livros assim produzem em mim a sensação de que eu seria capaz de escrever um bom livro mesmo sem ser um grande escritor. Nesse caso, mais ainda, porque o autor é juiz e professor de Direito e Filosofia.


Chamou-me a atenção no livro, como sói acontecer em muitas novelas, a individualidade do narrador. O narrador é alguém que não presta contas a não ser a si mesmo. Distante da filha, distante do pai, que era distante dele. Vive boa parte do tempo recolhido em sua interioridade. É o supremo condutor do seu destino. Não sei se esse traço é mais forte por se tratar de um autor alemão. Os alemães sempre me pareceram muito senhores de si.

O livro passa a mensagem de que só podemos viver plenamente nosso mundo interior quando vivemos completamente nossa individualidade, o que é muito complicado para nós latinos que temos nossas vidas tão misturadas com as de nossos pais, irmãos, filhos e amigos. Além disso, nunca podemos completamente conhecer o outro, ainda que o amemos. Essa interioridade escondida na individualidade é sempre solitária e impede o acesso do outro.

O amor é, então, retratado como a compreensão do outro, uma compreensão que nunca se esgota. Porque somos infinitos em nossa complexidade e em nossos motivos, o amor, a compreensão do outro, precisa ser igualmente infinito. A compreensão, porque deriva do amor, exclui o julgamento; é isso que o autor nos diz em uma das passagens mais belas no livro:

“Queria, ao mesmo tempo, compreender e julgar o crime de Hanna. Mas era algo terrível demais para isso. Quando tentava compreendê-lo, tinha a sensação de não julgá-lo como deveria. Quando o julgava como cabia julgá-lo, não havia lugar para a compreensão”. (p. 173)

A tradição judaico-cristã, há muito compreendeu essa dicotomia entre o amor e o julgamento. O Deus do Velho Testamento é o Deus do Juízo Final, mas o Deus do Novo Testamento é o Deus compassivo que não julga aqueles que ama. Na verdade, Deus é o mesmo, já no Velho Testamento é Ele quem enuncia:

“Não quero sacrifícios, misericórdia quero”

No Novo Testamento é seu Filho quem virá, no último dia, para julgar os vivos e os mortos. Em verdade, talvez Deus seja a conciliação perfeita entre esses dois inconciliáveis: amor e julgamento, misericórdia e justiça, pois é em Deus que todos os opostos se conciliam na perfeição da caritas.

O Direito é uma carreira que envolve julgamento e o julgamento, para ser justo, deve sempre ser feito com compreensão, com amor. Quando não atentam para isso, os operadores do Direito correm o risco de empobrecer sua decisão e reduzir a complexidade de tudo quanto é humano. Bernhard Schilink expressa assim esse risco:

“Não me sentia bem em nenhum dos papéis que vira os juristas exercendo no processo contra Hanna. A acusação me parecia uma simplificação tão grotesca quanto a defesa, e ser juiz era, entre as simplificações, certamente a mais grotesca de todas”. (p. 197)

Até que nos venha o amor estaremos, pois, sozinhos em nossas decisões, em nossos julgamentos e, com certeza, em nossos sofrimentos mais profundos. Mesmo assim, em alguns casos, é a vivência dessa individualidade que nos salva e dá sentido à nossa vida, quando nela, por meio dela ou apesar dela nos abrimos para o amor.

Fort, 30.03.2009
Nagibe de Melo Jorge

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Vida

A vida são essas alegrias
Entremeadas de enxaquecas,
Essa luta renhida com Deus,
Esse desejo que não cessa de desejar,
Esse desconsolo, esse abandono,
Essa procura.

A vida é uma fé que se renova sempre,
Eis que a vida sem fé não é vida
Senão morte não morrida.

É um clamor que se quer fazer escutar
E não se cansa de clamar.
É uma dor que não quer doer,
Mas dói pra ter prazer.
É o despautério de desafiar o próprio Deus
Para se ver envolvido em Seus braços.
É a vontade de morrer de viver...
Sempre.

Nagibe de Melo Jorge Neto
Fort, 26.01.2006

segunda-feira, 19 de julho de 2010

A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma.

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

domingo, 18 de julho de 2010

Eugenio Montale

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
árido, voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, o vazio atrás
de mim, com um terror de embriagado.

Depois como em painel, assentarão de um lanço
árvores casas colinas para o habitual engano.
Mas será tarde demais; e eu irei muito quedo
entre os homens que não se voltam, com meu segredo.

(tradução: Renato Xavier)

Comentário

Eugenio Montale, nas palavras de Umberto Eco, "é provavelmente o maior poeta italiano do século XX (e na minha opinião um dos primeiríssimos poetas do século XX em geral), recebeu seu Nobel apenas em 1975"


Esse poema de Montale é um dos meus favoritos. Descreve inusitamente o ar, como "ar de vidro" e fala do vazio, com o qual todos nós nos deparamos, com um "terror de embriagado", uma imagem forte e desconcertante, quase desesperadora. O poeta não se deixa abater e segue quedo.

O poema me faz lembrar a Máquina do Mundo, de Drummond, que é belíssimo. Teria Drummond se inspirado em Montale?

Cecília Meirelles

Tu Tens um Medo


Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

Cecília Meireles

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A Mãe Vazia

Todos os dias eu via
A mulher sentada, vazia,
Num cruzamento: agonia.
Com um filho no colo,
De quem passava pedia.
Amamentava e pedia.

Tinha dois outros,
Com quem brigava e pedia.
Os filhos inquietos corriam,
Brincavam na rua e pediam,
Mas, de perto da mãe, não saíam.

Que paradoxo eu via:
Uma plenitude vazia,
Os filhos dali não saíam.

Nagibe Jorge
Fort, 03.08.2005

Benjamin Button

Benjamin Button representa a solidão do modo mais incontornável: a solidão biológica. Enquanto todos envelhecem, Benjamin fica cada dia mais novo. Por isso é diferente, por isso é repudiado pelo seu próprio pai e, por isso, seu destino é estar sempre só, ser um incompreendido. Não pode brincar com as crianças porque, embora tenha a mesma idade delas, tem um corpo velho; não pode educar sua própria filha porque, embora seja velho, tem o corpo, os instintos e o comportamento dos jovens; poderia, no máximo, ser seu amigo, seu companheiro, mas não seu pai.


Benjamin somos nós. A nossa necessidade de alguém que nos compreenda para além de nós mesmos, a nossa necessidade de não estarmos sós, de sermos o outro com o outro e o absurdo fracasso de qualquer tentativa de suprir a essa necessidade. O amor incondicional que Benjamin encontra em uma negra, talvez ninguém possa nos dar.

Tal qual Benjamim, em algum momento da vida descobrimos que estamos sós, que crescemos cada um em seu tempo, compartilhamos um pouco aqui e outro acolá, mas não conseguimos compartilhar tudo, ser o outro. Nosso mais completo isolamento somos nós, na nossa necessidade de amor incondicional

Breviário das Lajotas

Caminho sobre lajotas quadradas e sem graça. São milhares delas que se estendem por grande parte de uma praça retangular, também sem graça, de cerca de vinte mil metros quadrados. As lajotas são iguais: dividem-se em trinta e seis quadrados, separados por dez vincos, cinco horizontais e cinco verticais. Trinta e seis é múltiplo de doze, talvez por isso esses quadrados nos dêem alguma impressão de completude e totalidade. Se não os houvesse contado não saberia dizer quantos eram, diria apenas que são muitos, incontáveis. Os quadrados são exatamente do mesmo tamanho e os vincos já estão todos enegrecidos, mas são eles que caracterizam as lajotas. Sem esses vincos, essas lajotas não seriam elas mesmas, seriam outras lajotas.


Sobre essas lajotas passam muita gente, inclusive eu, que sempre caminho aqui e, hoje, resolvi reparar as lajotas. São pessoas que descem dos ônibus, que vão e vêm do trabalho, que resolvem alguma coisa, que cospem, deitam-se e dormem sobre as lajotas. São pessoas apressadas, cansadas, aflitas, desesperançadas, mas outras bonitas, relaxadas, desocupadas. Sobre as lajotas passam bichos. São minhocas, lagartas, baratas, ratos, cachorros, mas principalmente gatos, são dezenas de gatos, que comem, bebem e defecam sobre as lajotas. Isso não é privilégio dos gatos, vejo pelo menos um motinho de cocô, que, pela forma, cheiro e localização, deve ser de um cachorro. Os gatos não ficam desse lado, preferem o lado sombreado da praça. Os ratos, as baratas, as lagartas e as minhocas também defecam. E há, ainda, a excrescência dos pássaros que vivem sobre as frondosas árvores da praça, acima das lajotas. E, seguramente, das abelhas e das formigas que também fazem morada nas muitas árvores. Mas todos esses pequenos excrementos passam desapercebidos.

O que me impressiona é a austeridade das lajotas. Há uma ou algumas dezenas de anos mantêm-se ali reunidas por uma argamassa que em alguns pontos se desfez, descoloridas, ásperas, algumas afundadas, outras quebradas, rachadas, manchadas, até pichadas, mas bastantes. Acompanham o chão no que tem de irregular, nas pequenas sublevações e nas depressões e buracos. Na verdade, poucas se soltaram e se perderam. A maioria delas continua firme. Uma ou outra falta, e ninguém liga. Passam por cima. O espaço que deixaram é menor que um pé. As lajotas têm apenas quatrocentos centímetros quadrados, vinte por vinte. Em um ponto da praça, algumas lajotas quebradas foram remendadas com outras lajotas quebradas, metade com metade, um terço com metade, um terço com dois terços, num conjunto desigual, onde sobressai o excesso de cimento. Parece uma cicatriz anódina, uma ferida naquele tapete de lajotas absolutamente iguais, a não ser pela cor.

É difícil definir a cor das lajotas. São cinzas, algumas amareladas, mas todas com um tom acinzentado e desbotado, que disfarça, esmaece, torna afinal sem importância a cor das lajotas. O importante é a textura, que exprime força, não a cor. A cor é frescura a que não se podem dar ao luxo essas lajotas. O clima outonal e chuvoso decora as lajotas com milhares de pequenas folhas amarelas e úmidas, o que lhes confere certa graça. São folhas de acácias; de certo as acácias da minha infância, pois não há acácias nessa praça. O importante é que são pequenas e caem esparsas, por isso, apenas decoram, mas não escondem as lajotas. Talvez não exista uma folha caída sobre cada lajota. Seguramente não há. Temos, então, um vasto tapete cinza quadriculado salpicado de amarelo, sob um teto verde e azul.

Nos duzentos metros do lado oeste da praça, as lajotas são mais acinzentadas, mais desbotadas. Sofrem a inclemência do sol todas as tardes, sem que nenhuma das muitas árvores possa lhe oferecer uma nesga de sombra que seja. No lado leste, que mede também duzentos metros, consigo divisar tons de amarelo em muitas lajotas, o que me leva a crer que todas teriam sido amarelas um dia, um amarelo castanho invulgar, nobre até, que me faz lembrar o piso de alguma esquecida igreja barroca. Concluo que as lajotas do norte envelheceram mais cedo, acinzentaram.

Depois de algumas voltas pensando sobre isso, vejo que há tons de amarelo esparsos em outros pontos da praça, o que me leva a crer que as lajotas sempre foram algumas amarelas e outras cinzas ou brancas. Ou teriam sido colocadas em épocas diferentes? Seria difícil discernir se as mais antigas são as amarelas ou as cinzas. O fato é que o tempo lhes deu uma harmonia, retirou-lhes a cor e qualquer ímpeto de beleza para lhes conferir o essencial: a forma e a textura, o cimento e a aspereza.

Pela oitava volta, tonteado de seguir, cabeça baixa, as linhas retas que se formam pela junção simétrica dos vincos, os inúmeros quadradinhos e o relevo, em um tapete monótono que muda muito pouco ou quase nada, entrevejo que algumas lajotas cinzentas do sul têm musgo em seus vincos, o que lhes dá um tom esverdeado fresco e alegre. É profundo e quase imperceptível o líquen, mas o suficiente para fazer emanar um tom de verde do negrume dos vincos que se mistura, já em meus olhos, ao cinza das lajotas.

Mais à frente, encontro, depois de muito as ter pisado, quatro lajotas amarelas de verdade, de um amarelo mostarda pálido, juntas, formando um quadrado. São diferentes, têm textura mais lisa, o que proporciona vincos ligeiramente mais definidos para formarem os mesmos trinta e seis quadrados das demais. Os quadradinhos destas parecem maiores por conta dos vincos mais definidos, mas sou capaz de apostar que são exatamente do mesmo tamanho.

Como as outras lajotas, estas não estão niveladas, acompanham os pequenos acidentes do terreno, nada as destaca, não se sobressaem. Seguramente passam desapercebidas. São apenas quadro, talvez mais duas, um pouco adiante. De onde vieram assim diferentes? Quem teria tido o requinte de trazê-las, apenas seis, para as colocarem ali? Penso que um desses taxistas do ponto em frente, dando pela falta das lajotas, trouxe de casa a sobra da última reforma; mas não me convenço.

Percebo, então, que há também lajotas pretas. Sim, pretas. Em alguns pontos, talvez em dois pontos apenas, há, de fato, lajotas negras, de um negro esmaecido, mas indefectivelmente negro. Não uma ou outra isolada, aparecem em grupos de cor bem definida. Não foi proposital, não formam um desenho, não demarcam uma específica área, não dizem nada, não compõem com o conjunto. Estão lá as pretas tais quais as cinzas e, talvez, as que um dia foram amarelas; também são pisadas, cuspidas e defecadas, também austeras. Talvez se pudesse distingui-las por não percorrerem toda a extensão da praça, talvez porque aparecem muito próximas de algumas majestosas árvores, talvez por serem poucas e diferentes e, por isso, especiais.

A verdade é que todas as lajotas, as cinzas, as pretas e as amarelas, e até as amarelas distintas, trazidas não se sabe como, estão imóveis para sempre, nenhuma percorre a extensão da praça, a não ser na minha figura de linguagem. Nenhuma sente calor nem frio, não se refestelam na sombra, nem queimam ao sol, apenas resistem. Todas, inclusive as pretas. Um dia sairão dali a marretadas, pela força bruta de braços suados e acres, quando cada uma terá quebrados, partidos e separados em pedaços absolutamente aleatórios seus trinta e seis quadrados sem graça e decompor-se-ão em entulho e ruínas.

Nagibe de Melo Jorge Neto

O Meu Avô Nagibe

Quando nasci, faltavam 3 dias para o meu avô completar 68 anos. Meus pais moravam em Quixadá e ele, em Fortaleza. A primeira lembrança que tenho dele é de uma véspera de natal ou outra comemoração; minhas tias e tios todos reunidos pela manhã, antes da festa, e eu brincando com uma bola de encher. - Nagibinho, me dê esse balão, meu filho. Se estourar, é capaz do seu avô ter um troço com o susto – eram os cuidados da tia Salete.

Por essa época o vovô já era meio surdo e estava longe de onde eu brincava; até hoje me pergunto como se daria o susto.
Uma grande distância nos separava; mas nem por isso, ele deixou de me influenciar enormemente. Eu observava de longe aquele velhinho de andar arrastado, circunspeto, indiferente às superficialidades da vida, reverencial. O modo cerimonial como se sentava à mesa na hora do almoço, sempre depois de acender a luz da sala de jantar e antes de bater com o garfo no prato, anunciando a refeição. A maneira como, invariavelmente, servia-se:
– Primeiro o arroz, depois o feijão e depois o macarrão, depois, se ainda tiver, pode vir tudo que quiser. – cantava para fazer graça.
Depois do almoço, o pudim. E o café, cuja xicrinha levava para a varanda, onde estirava as pernas sobre outra cadeira, depois do invariável – Aaahhh! Tinha fama de dengoso, e de teimoso também, o meu avô. Mas teve uma vida bem ativa. Aposentou-se só aos 70 anos de idade, na expulsatória, como Sub-Procurador Geral de Justiça, o que não o impediu de continuar a trabalhar até quase 80, como assessor do Des. Ferreirinha, no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Tinha orgulho de ter, em determinado ano, alcançado a marca de mil pareceres lavrados na Procuradoria de Justiça do Estado do Ceará.
Que a cerveja era a sua bebida preferida, só soube por ouvir dizer. Não alcancei essa época, só bebi com ele uma vez. Cismou um dia que voltaria a beber. Abriu o portão e foi para o bar, sob os gritos de apuros da minha avó. Trouxe ainda duas garrafas, que bebemos na varanda. Foi só, ou desistiu da idéia ou vez aquilo de pirraça com a vovó.
Depois de aposentado, vi-o muitas vezes no seu gabinete, datilografando em uma remington manual. Aquela pequena sala, a qual só se podia atingir passando pelo quarto da vovó e pelo quarto de vestir, era mágica pra mim, tinha uma ampla janela que, nas horas viçosas da manhã, espalhava uma luz leitosa e fresca sobre a escrivaninha negra do vovô, repleta de pequenos cacarecos, canetas, relógios e despertadores de todos os tipos, lanternas, canivetes e, até, uma ou outra ferramenta. A mesa onde se apoiava a máquina de escrever ficava por trás do bureau e da cadeira giratória, com apoio para os braços, de madeira de lei; mais que isso, cabia apenas a pequena estante com poucos livros e, na parede, um pôster fotográfico, onde eu, com apenas dois anos de idade, sorria em preto e branco.
Foi nessa estante que encontrei, já adolescente, estudando em Fortaleza, uma brochura intitulada O misterioso triângulo das Bermudas. Depois do almoço, o vovô com as pernas esticadas, sentado da dita varanda, palito no canto da boca, vendo-me folhear o livro, falou. - Quer levar? Leve...- Acho que já perdi o livro que, naquele dia, carreguei com rematado orgulho.
Eu morei um tempo perto da casa dele e sempre andava por lá. De certa feita ele me pediu para comprar o leite, deu-me o dinheiro e fui satisfeito como o quê. Voltei com um saco de leite B; o C havia acabado. Ao receber o pacote, não teve dúvidas. - Olhe Wanda! Esse menino é abestado...
Cresci ouvindo ovações ao vovô, mas eram a minha avó, as minhas tias, o meu pai. Não se deve dar muito crédito, embora não se desmereça. Quando ingressei na Faculdade de Direito, escutei outras referências a ele. Alguns professores o conheciam e não hesitavam em tecer-lhe comentários elogiosos. Um dia transmiti-lhe que um professor de Direito Penal mandara lembranças e um grande abraço. - Quem?... O Desembargador?... Foooi?... Ehehe. - O professor era um renomado advogado.
Às vezes via-o tão lúcido, escrevendo alguma coisa ou fazendo versos, que me perguntava onde estavam os livros do vovô, a sua grande biblioteca de Direito Penal. Papai me dizia que uns haviam sido emprestados, outros se deterioraram pelo Mondubim, no sítio onde eles moraram por um tempo. Uma vez, num desses momentos pós almoço, não sei porque, o vovô recitou pra mim, como que para testar sua memória, o art. 81 do Código Civil, enunciando o conceito de ato jurídico. Acabara de ser entabulada a nossa mais profícua discussão jurídica.
Jamais o vi lendo coisa diversa dos pocket books de faroeste, deitado de lado na ampla cama, o abajur aceso. Tinha aos montes. Era como se sua vida se tivesse resumido ao essencial: permanecer ao lado da Wanda, montar a árvore, instalar os enfeites luminosos por toda a casa e também no jardim, a cada Natal. Era altiva a maneira como, nas sucessivas vésperas de Natal que passei na casa da vovó, ele permanecia na sua felicidade centrada, indiferente ao fuxico, ao ruge-ruge de gente. Os homens sentavam numa mesinha na varanda, bebiam e conversavam e o meu avô em sua placidez distante, separado dos assuntos mundanos.
Era auto-suficiente. Ele se bastava. Fazia os próprios projetos e os executava, como no dia em que resolveu dirigir seu velho Diplomata SS, rubro-negro. Depois de tanto tempo sem guiar, simplesmente pegou das chaves, deu a partida e a aventura acabou numa frondosa árvore que se erguia na calçada oposta, bem em frente à garagem, com uma lanterna quebrada.
Tive a alegria de vê-lo e ajudá-lo a consertar seus carros. Detinha uma técnica toda especial para fazer com que o motor funcionasse, tampando com a mão a saída de ar do carburador. Por duas oportunidades fui com ele até o Mondubim. Levávamos cloro para a piscina, almoçávamos, e, numa das vezes, o vovô tirou a camisa e se pôs a concertar o motor de puxar água, botava força, praguejava; não havia jeito, não sairíamos dali antes que ele sentenciasse. – Ficou formidável, especial.
Depois de algum tempo que a Trycia freqüentava a casa dos meus avós, ele nos sacudiu a pergunta:
- Porque não casam?
- Com que dinheiro, vovô?
- Ehehehe...Não precisa de dinheiro para casar... – Talvez um dia eu entenda.
O meu avô atingiu um estágio onde os questionamentos e as preocupações cessam. A filosofia resume-se ao ato. Bastava-lhe viver e deixar que os outros, por queridos que fossem, também vivessem. Olhava a vida com um distanciamento confortável, um silêncio cúmplice, uma serenidade de quem sabe que não é preciso se justificar perante ela. Quando me despedia dele, beijava-lhe a cabeça sempre pensando no herpes zoster que lhe atingira a testa alguns anos antes e ele:
- Tá... Felicidades...
Conservava-se austero, as mãos entrelaçadas atrás da cintura e os lábios crispados, fazendo um pequeno beiço. Altivo. Como se não fosse preciso qualquer esforço para se alcançar o sentido da vida.

Nagibe de Melo Jorge Neto