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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Breviário das Lajotas

Caminho sobre lajotas quadradas e sem graça. São milhares delas que se estendem por grande parte de uma praça retangular, também sem graça, de cerca de vinte mil metros quadrados. As lajotas são iguais: dividem-se em trinta e seis quadrados, separados por dez vincos, cinco horizontais e cinco verticais. Trinta e seis é múltiplo de doze, talvez por isso esses quadrados nos dêem alguma impressão de completude e totalidade. Se não os houvesse contado não saberia dizer quantos eram, diria apenas que são muitos, incontáveis. Os quadrados são exatamente do mesmo tamanho e os vincos já estão todos enegrecidos, mas são eles que caracterizam as lajotas. Sem esses vincos, essas lajotas não seriam elas mesmas, seriam outras lajotas.


Sobre essas lajotas passam muita gente, inclusive eu, que sempre caminho aqui e, hoje, resolvi reparar as lajotas. São pessoas que descem dos ônibus, que vão e vêm do trabalho, que resolvem alguma coisa, que cospem, deitam-se e dormem sobre as lajotas. São pessoas apressadas, cansadas, aflitas, desesperançadas, mas outras bonitas, relaxadas, desocupadas. Sobre as lajotas passam bichos. São minhocas, lagartas, baratas, ratos, cachorros, mas principalmente gatos, são dezenas de gatos, que comem, bebem e defecam sobre as lajotas. Isso não é privilégio dos gatos, vejo pelo menos um motinho de cocô, que, pela forma, cheiro e localização, deve ser de um cachorro. Os gatos não ficam desse lado, preferem o lado sombreado da praça. Os ratos, as baratas, as lagartas e as minhocas também defecam. E há, ainda, a excrescência dos pássaros que vivem sobre as frondosas árvores da praça, acima das lajotas. E, seguramente, das abelhas e das formigas que também fazem morada nas muitas árvores. Mas todos esses pequenos excrementos passam desapercebidos.

O que me impressiona é a austeridade das lajotas. Há uma ou algumas dezenas de anos mantêm-se ali reunidas por uma argamassa que em alguns pontos se desfez, descoloridas, ásperas, algumas afundadas, outras quebradas, rachadas, manchadas, até pichadas, mas bastantes. Acompanham o chão no que tem de irregular, nas pequenas sublevações e nas depressões e buracos. Na verdade, poucas se soltaram e se perderam. A maioria delas continua firme. Uma ou outra falta, e ninguém liga. Passam por cima. O espaço que deixaram é menor que um pé. As lajotas têm apenas quatrocentos centímetros quadrados, vinte por vinte. Em um ponto da praça, algumas lajotas quebradas foram remendadas com outras lajotas quebradas, metade com metade, um terço com metade, um terço com dois terços, num conjunto desigual, onde sobressai o excesso de cimento. Parece uma cicatriz anódina, uma ferida naquele tapete de lajotas absolutamente iguais, a não ser pela cor.

É difícil definir a cor das lajotas. São cinzas, algumas amareladas, mas todas com um tom acinzentado e desbotado, que disfarça, esmaece, torna afinal sem importância a cor das lajotas. O importante é a textura, que exprime força, não a cor. A cor é frescura a que não se podem dar ao luxo essas lajotas. O clima outonal e chuvoso decora as lajotas com milhares de pequenas folhas amarelas e úmidas, o que lhes confere certa graça. São folhas de acácias; de certo as acácias da minha infância, pois não há acácias nessa praça. O importante é que são pequenas e caem esparsas, por isso, apenas decoram, mas não escondem as lajotas. Talvez não exista uma folha caída sobre cada lajota. Seguramente não há. Temos, então, um vasto tapete cinza quadriculado salpicado de amarelo, sob um teto verde e azul.

Nos duzentos metros do lado oeste da praça, as lajotas são mais acinzentadas, mais desbotadas. Sofrem a inclemência do sol todas as tardes, sem que nenhuma das muitas árvores possa lhe oferecer uma nesga de sombra que seja. No lado leste, que mede também duzentos metros, consigo divisar tons de amarelo em muitas lajotas, o que me leva a crer que todas teriam sido amarelas um dia, um amarelo castanho invulgar, nobre até, que me faz lembrar o piso de alguma esquecida igreja barroca. Concluo que as lajotas do norte envelheceram mais cedo, acinzentaram.

Depois de algumas voltas pensando sobre isso, vejo que há tons de amarelo esparsos em outros pontos da praça, o que me leva a crer que as lajotas sempre foram algumas amarelas e outras cinzas ou brancas. Ou teriam sido colocadas em épocas diferentes? Seria difícil discernir se as mais antigas são as amarelas ou as cinzas. O fato é que o tempo lhes deu uma harmonia, retirou-lhes a cor e qualquer ímpeto de beleza para lhes conferir o essencial: a forma e a textura, o cimento e a aspereza.

Pela oitava volta, tonteado de seguir, cabeça baixa, as linhas retas que se formam pela junção simétrica dos vincos, os inúmeros quadradinhos e o relevo, em um tapete monótono que muda muito pouco ou quase nada, entrevejo que algumas lajotas cinzentas do sul têm musgo em seus vincos, o que lhes dá um tom esverdeado fresco e alegre. É profundo e quase imperceptível o líquen, mas o suficiente para fazer emanar um tom de verde do negrume dos vincos que se mistura, já em meus olhos, ao cinza das lajotas.

Mais à frente, encontro, depois de muito as ter pisado, quatro lajotas amarelas de verdade, de um amarelo mostarda pálido, juntas, formando um quadrado. São diferentes, têm textura mais lisa, o que proporciona vincos ligeiramente mais definidos para formarem os mesmos trinta e seis quadrados das demais. Os quadradinhos destas parecem maiores por conta dos vincos mais definidos, mas sou capaz de apostar que são exatamente do mesmo tamanho.

Como as outras lajotas, estas não estão niveladas, acompanham os pequenos acidentes do terreno, nada as destaca, não se sobressaem. Seguramente passam desapercebidas. São apenas quadro, talvez mais duas, um pouco adiante. De onde vieram assim diferentes? Quem teria tido o requinte de trazê-las, apenas seis, para as colocarem ali? Penso que um desses taxistas do ponto em frente, dando pela falta das lajotas, trouxe de casa a sobra da última reforma; mas não me convenço.

Percebo, então, que há também lajotas pretas. Sim, pretas. Em alguns pontos, talvez em dois pontos apenas, há, de fato, lajotas negras, de um negro esmaecido, mas indefectivelmente negro. Não uma ou outra isolada, aparecem em grupos de cor bem definida. Não foi proposital, não formam um desenho, não demarcam uma específica área, não dizem nada, não compõem com o conjunto. Estão lá as pretas tais quais as cinzas e, talvez, as que um dia foram amarelas; também são pisadas, cuspidas e defecadas, também austeras. Talvez se pudesse distingui-las por não percorrerem toda a extensão da praça, talvez porque aparecem muito próximas de algumas majestosas árvores, talvez por serem poucas e diferentes e, por isso, especiais.

A verdade é que todas as lajotas, as cinzas, as pretas e as amarelas, e até as amarelas distintas, trazidas não se sabe como, estão imóveis para sempre, nenhuma percorre a extensão da praça, a não ser na minha figura de linguagem. Nenhuma sente calor nem frio, não se refestelam na sombra, nem queimam ao sol, apenas resistem. Todas, inclusive as pretas. Um dia sairão dali a marretadas, pela força bruta de braços suados e acres, quando cada uma terá quebrados, partidos e separados em pedaços absolutamente aleatórios seus trinta e seis quadrados sem graça e decompor-se-ão em entulho e ruínas.

Nagibe de Melo Jorge Neto

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