Escrever pode mudar tudo.


quarta-feira, 29 de março de 2017

Abismo


















Ao Dimas Macêdo



Estiveste na beirada do abismo, oh poeta!
De lá divisaste as maravilhas da 
Pobre e esplendorosa alma humana

Suas profundezas abissais 
Os picos recobertos da neve mais branca
Onde o frio congela a ternura
E o vento fustiga dúvidas atrozes

De pé encaraste mistérios tremendos
O olhar transido e extenuado de vida
Perdido na bruma, pisaste o exato limite 
Entre teu ser e tudo que o transcende

Mais um passo era o Nada
Ninguém escapa ileso, oh poeta!
Tu traz os olhos vazados de luz
E os lábios ressecados de morte

Da beirada do abismo cantas o inefável
Anuncia profético o que nossos olhos 
Medrosos não se arriscariam a mirar
Mas nosso coração anseia em frêmito

Ah, covardes! Refugamos os desvãos da alma!
Cegos para as maravilhas do mundo
Tu és, poeta, nossos olhos

Onde só temos casca
Tu és, poeta, nossa pele
Sentimos em ti o gelo que queima
E o frio dilacerante do sol

Dois anjos te seguram ao pé do abismo
Um deles canta, o outro grita
A tua alucinação, poeta, é nosso consolo
Nas noites escuras somos nós em ti
Nas promessas do dia és tu em nós

Nagibe de Melo Jorge Neto

terça-feira, 28 de março de 2017

Janela

Estou sentado ao lado de uma pequena janela de vidro. Em cada fila de duas cadeiras, há uma janela. Já viajei durante muito tempo no corredor, quando me esticava para ver lá fora. Há algum tempo consegui sentar junto à janela. É maravilhoso, o vento bate no meu rosto, assanha os cabelos e resseca meus olhos. Quando esfria demais ou quando há muita fumaça sou obrigado a fechar a janela e me distrair com algo aqui dentro. Esqueço a janela. Aqui, não há assentos marcados, vamos nos acomodando como calha.
O trem anda ora rápido, ora devagar. De quando em quando, para nalguma estação. Vejo as pessoas vendendo e comprando, o movimento agitado nas grandes plataformas, a emoção das chegadas e das despedidas, os acenos. Alguns homens, mulheres e crianças carregam bagagens imensas. O movimento tedioso nos pequenos lugares, um cachorro boceja, um homem agasalhado espera sozinho.
As paisagens jamais se repetem. Há campos floridos e desertos, há névoas densas, há noite estrelada sobre uma imensa planície. A lua clara ilumina as montanhas ao fundo. Muitos dormem, muitos dormem. Eu tento acordá-los, mostrar a beleza dalgum lugar, um cervo que corre. Muitas vezes me exasperei tentando mostrar um imenso lago, o belo, o fantástico, o absurdo. Tudo passa pela janela deste imenso trem que é como o tempo, não se detém.
Com a idade, decidi aproveitar mais a viagem. Não incomodo mais as pessoas querendo lhes mostrar isso ou aquilo. Recostado na cadeira, silencio ante o mundo que se transforma à minha janela. Fico maravilhado com o que vejo. Algumas vezes é sublime; outras, terrível. Silencio. Aos poucos vou descobrindo que é impossível mostrar a paisagem para alguém. É impossível. Cada um vê diferente.