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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Audiência de Custódia

Sábado pela manhã. Audiência de custódia. O velho entrou cabisbaixo. Cabelos grisalhos bem curtos, quase completamente brancos, cobertos por um boné de propaganda política das eleições passadas. Camisa velha de malha, muito surrada. Calção de tecido sintético, desses que se usa para exercícios. Chinelos de dedo. Pés calosos e rachados. Expressão quase infantil, talvez pela sacola pequena que trazia pendurada às costas por cordões, como uma mochila escolar. A acusação era uso de documento falso. O velho foi preso enquanto pedia um benefício na agência do INSS em Cascavel.
Entrou algemado, mas não apresentava qualquer sinal de perigo. Pode tirar as algemas, o juiz disse monocórdio. O velho manteve-se impassível. Sentou compenetrado ao lado do defensor público, as mãos ainda juntas, como se as algemas não tivessem sido retiradas. Magro, magérrimo, joelhos salientes. Sob a pele, podia-se divisar músculos ainda rígidos. Quantos anos teria? Depois de advertir que ele poderia ficar calado e não estava obrigado a responder as perguntas, o juiz começou.
– Como é o nome do senhor?
– Moisés, inxecelência. – Sorriu. Deixou entrever os dois dentes amarelados do hemiarco inferior, seus únicos dois dentes.
– O senhor pode tirar o boné?
Ele tirou. Mãos grossas. Ajeitou os cabelos de modo atabalhoado, a imitação de um gesto que ele não costumava fazer. Os olhos apareceram pequenos, fundos, rodeados por rugas. A pele ressacada de sol.
– O senhor mora aonde?
– Tenho casa não, inxelência. Vivia no Pará, pela feira. Vida de rato, inxelência. 
– O senhor trabalha de quê, Seu Moisés?
– Tenho trabalho não, inxelência. Fazia uma coisinha aqui outra ali, pela feira. De vez em quando alguém me dava um agrado. A gente vai vivendo, né inxelência? Vida de rato, inxelência.
– Como o senhor veio pra Cascavel?
– Caminhão. Vim de carona. A gente faz amizade, né inxelência? Fiquei por aí. Uma mulher da igreja arranjou um quartinho pra eu ficar.
– O senhor sabe o endereço?
– É esse que tem aí. 6285.
– Travessa das Américas? 6285 é o número?
– É, inxelência! – Sorriu mais solto. Gesticulava levantando os polegares, quase alegre, como se os gestos falassem o que ele não conseguia dizer. 
– Seu Moisés, como o senhor foi preso?
– Sei não, inxelência. Uma mulher me arranjou esses documentos na feira, pro mode eu tirar o benefício. Ela me disse: vou lhe tirar dessa vida de rato! Vou lhe dar os papéis.
– O senhor tem quantos anos?
– Setenta, inxelência. – Sorriu de novo. Como uma criança que quisesse conquistar a atenção dos adultos. Os gestos apressados e alegres sem muita harmonia com o modo como falava, como se quisesse dizer muito mais, explicar tudo.
– Setenta!? Então o senhor teria direito ao benefício. O senhor tem identidade?
– Tenho não senhor, inxelência. Só esses documentos aí que a mulher me deu.
– O senhor nunca tirou os documentos?
– Tirei não. Vida de rato, inxelência. – Ele parecia pedir desculpas por não ter os documentos.
– O senhor foi bem tratado pela polícia?
Um instante de silêncio, como se ele não tivesse entendido a pergunta. Como se a pergunta não fosse pra ele, ou como se fosse uma pergunta imprópria.
– Seu Moisés?
– Fui, inxelência! Fui! Me deram até de comer, lá!
– O senhor tem parentes, no Pará?
– Tenho mais não, inxelência.
– O senhor já foi preso alguma vez, Seu Moisés?
– Fui nunca não, inxelência. – Ele sorria e gesticulava como se quisesse dar ênfase à resposta.
– O senhor já matou alguém, Seu Moisés?
– Ave Maria! Não, incelência! Deus me livre! – levantou as mãos pro céu, um gesto tímido, acanhado, como se ali não fosse o lugar de rezar.
O juiz sorriu. Ele riu de volta, como se tivesse entendido que acreditaram nele.
– Se o senhor for solto, o senhor vai pra onde?
– Queria voltar pra casa, inxelência! Tenho pra onde ir não. Sou de rua.
– Mas por enquanto não pode. Tem que ir na defensoria segunda-feira. O defensor vai ajeitar tudo pro senhor. Lá, eles podem conseguir o benefício pro senhor. Se senhor tem mais de 65 anos, o senhor tem direito ao benefício.
– Quero ficar perto do mar. Na beira-mar, né?
– Na beira-mar?
– É. Lá tem restaurante, lavo um carro, dá pra arranjar alguma coisa. – Fez um gesto levando a mão à boca.
O defensor público pediu a liberdade provisória. O procurador concordou. Sem mais perguntas. Seu Moisés carimbou o dedão direito em muitos papéis e pegou uma carona com a polícia até a sede da defensoria pública, pra saber logo pra onde tinha que ir na segunda.
– O senhor tem dinheiro, seu Moisés?
– Tenho dez reais, inxelência.
– Tome mais vinte. O senhor pode precisar. Não vá embora, sem antes falar com o defensor na segunda-feira. O senhor entendeu?
– Entendi demais, inxelência. – Os gestos continuavam eufóricos depois que ele terminava de falar, sempre sorrindo.

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