Escrever pode mudar tudo.


domingo, 1 de outubro de 2017

Oficina com Gonçalo M. Tavares

Não era grande nem imponente. Não havia empáfia ou presunção. Entrou na sala quase cabisbaixo, a voz baixa. Carregava uma mochila surrada, óculos de grau desses com correias que amarram uma haste à outra por trás do pescoço, para que não sejam esquecidos nalgum canto. Pediu que os alunos fizessem um U com as carteiras para que ficassem mais próximos. Ficaria mais fácil falar, mais fácil escutar. Gostava das pessoas próximas. Nenhuma elegância, a não ser a elegância de mostrar-se comum e ir se revelando aos poucos. Nem nas roupas havia presunção ou prestação de contas, uma calça de brim marrom clara e uma camisa preta amarrotada, que deixava entrever a cueca preta quando levantava os braços. Difícil relacionar aquele homem com o multipremiado da fotografia, aquele de quem Saramago disse “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater”. Na fotografia era outro, ousado, desafiador, pronto para afirmar todo o seu valor. Ali, diante de nós, não.

De modo natural, como se não fosse preciso, provável ou possível, Gonçalo Tavares começou lentamente a cativar cada um dos ouvintes de sua oficina. Apresentamo-nos. Um por um, declinamos nossos nomes e ocupações. Pessoas diversas. Mais jovens, mais velhos, quinze a vinte pessoas, de alunos secundaristas a acadêmicos pós-graduados.

Antes mesmo das apresentações, contudo, ao que me lembro, ele já proclamara o essencial. O tema ao longo do qual se desenvolveu toda a oficina da manhã e a palestra da tarde. “Escrever é ver de forma diferente. Tem a ver com ponto de vista. Escrever começa por encontrarmos um bom ponto de vista”. Registrar palavras no papel ou no computador é apenas a fase final da escrita. Escrever começa com olhar. Olhar com atenção. Reparar. É preciso parar, ver, dedicar tempo à pessoa ou coisa que será colhida na memória, depois transformada e registrada na escrita. O olhar é a matéria-prima do escritor, é quando ele colhe os frutos que serão transformados em suco.

Escrever tem a ver com estar isolado”.  Foi a segunda pérola jogada. Era como se dissesse escrever é difícil, escrever é duro. E contou como se isola em um pequeno apartamento em Lisboa, na alucinação que é escrever. Quando recebe a visita dos pais e os hospeda, eles que moram nalguma província do interior, nem mesmos aos pais concede lhe interromper. É um ato de amor não interromper a alucinação da escrita. E os pais, quando lhe querem falar, simplesmente despacham pela brecha da porta fechada um bilhete. E essa compreensão é amor. “Abrir a porta destruiria completamente aquela alucinação que é escrever”.

Essas ideias impactantes, ele as ia dizendo assim em voz baixa, como se tudo fosse coisa naturalmente sabida.

Há uma ligação entre a escrita, o desenho e a matemática. Outra pérola atirada. “O traço é a forma como o homem pensa. O traço dá origem ao desenho, à escrita e à matemática”. O alfabeto todo pode ser feito com apenas alguns traços. Pena que nos distanciamos do desenho, a partir de algum ponto ainda bem cedo na infância.

No primeiro exercício, pediu-nos para desenhar uma casa errada. Em seguida foi comentado cada um dos desenhos para nos mostrar que “em termos de criatividade o erro, a ideia de erro é muito potente.” O erro, assim como alguma restrição, algum obstáculo, alguma limitação favorecem a criatividade. “A liberdade total não é criativa”. O ser humano pensa por oposição ou aproximação. E foi identificando as operações mentais que comumente fazemos para chegar à ideia de casa errada: eliminação, eliminação parcial, inversão, torção, separação, cortar aos pedaços, achatamento, espremedura etc.

No segundo exercício deparamo-nos com a limitação da linguagem. “A linguagem nunca consegue chegar à precisão exata”. Para ver é preciso tempo. “Tempo é fundamental para a escrita.” Para escrever é preciso olhar, reparar, no sentido de observar por muito tempo, deixar que a coisa ou pessoa se revele pelo abrandamento do olhar. O olhar está abrandado quando a respiração está calma.

Mesmo a linguagem objetiva dificilmente consegue ser suficientemente precisa. A precisão é alcançada pelo abrandamento do olhar ou pela construção de imagem. Alguns escritores produzem imagens de rara precisão. É por meio de imagens que Luís de Camões alcança uma estupenda precisão nesses versos:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Ele nos pediu para olharmos para o rosto da pessoa ao nosso lado e descrevermos em voz alta do modo mais detalhado e objetivo possível o que víamos. Olhar com vagar, mirar, repousar o olhar e a mente no rosto ao nosso lado. Para isso não se pode olhar de rabo de olho, não se pode tresolhar, passar os olhos, é preciso virar-se, direcionar-se para a pessoa, encarar, repousar o olhar estando em frente dela.

Ao meu lado estava uma menina. Eu me virei para ela. Ela se virou para mim. Ficamos separados pelos joelhos. O exercício foi um pouco desconcertante. O olhar desnuda. Posso dizer que minha intimidade com aquela menina aumentou um grau. O olhar vagaroso revela segredos do observado.

Depois de mirá-la por tanto tempo e descrever seus cabelos pintados de amarelo, seus pequenos olhos castanhos amendoados, os supercílios gordos, os cílios bem definidos, nem longos nem curtos, seus lábios carnudos, as marcas de catapora aqui e ali, a maior um pouco acima do meio do nariz largo, a mais profunda um pouco abaixo do canto exterior do olho esquerdo, o sorriso envergonhado que deixavam ver dentes ligeiramente manchados, as pequeninas elevações na pela macia, como se ainda quase fossem explodir em acnes, denunciando sua adolescência, depois de repousar o meu olhar no rosto dela durante um bom tempo, perguntei-lhe seu nome, como que para protegê-la ou para me proteger. O nome protege. O nome é linguagem e a linguagem, ao mesmo tempo em que revela, esconde o real.

Conversamos um pouco para nos esconder dos nossos olhares. Vi-me também profundamente observado, analisado, detalhadamente descrito, eu velho com idade para ser pai dela. A idade nos atropela nos momentos mais banais. Ela cursava o terceiro ano do ensino médio e queria fazer cinema. Pois bem, se eu pudesse usar da subjetividade, diria que seu cabelo amarelo gritava uma vontade de poder e alguma irreverência própria de quem quer fazer cinema.

No terceiro exercício, Gonçalo chamou nossa atenção para uma ação que iria praticar. Que todos olhassem, que todos vissem ao mesmo tempo o que ele iria fazer e depois descrevessem o que viram. Eu a descrevi assim:

O professor contou até três e abriu a tampa do pincel azul, com um certo ímpeto, como se dali fosse sair algo maravilhoso, como se fizesse um gesto mágico, misterioso, inapreensível. Nós precisaríamos desvendar o mistério. Descrever o que ele havia feito. Mas o que fez afinal? Abriu o pincel azul de modo expressivo, os cotovelos levantados, como se fosse uma criança apresentando um número de mágica. Faltou apenas a palavra mágica. Qual seria a mais apropriada? Abracadabra? Shazam?

Ao lermos o que havíamos escrito, percebemos que cada um viu diferente. Cada um viu do seu próprio ponto de vista, no seu próprio tempo. O tempo da escrita é diferente do tempo do acontecimento. Ao descrevermos a ação, alguns alargaram os eventos, outros foram mais objetivos. “O escritor tem o controle do tempo.” Esse poder sobe à cabeça de muitos. Não pareceu ter subido à cabeça do Gonçalo.

Não há objetividade na escrita, portanto. Eis tudo. Cada um tem um ponto de vista. Enxerga do seu próprio modo, com seus próprios preconceitos e valores. Ele chamou a objetividade de “a tontice da ideia de objetividade”. Não há verdade que não seja a verdade do escritor. Na palestra da tarde, ele iria dizer que a objetividade é um dos grandes males da humanidade. A objetividade é sempre uma verdade que se quer à força impor ao outro. Eu concordo. Acho que Habermas concordaria também.

No quarto exercício, foi-nos apresentado o poder do acaso. Para os gregos, o acaso era importante porque determinado pelos deuses. A civilização ocidental moderna, contudo, erigiu o homem e a decisão humana à suprema potência, desmereceu o acaso. O homem é senhor de suas escolhas e de seu destino. O acaso é a desordem, o acidente, o que deve ser suprimido.

Na criação, contudo, o acaso é poderoso. Funciona como o obstáculo ou a limitação que atiça a criatividade. Ele pediu que disséssemos cinco letras ao acaso. E, C, I, T, O. Agora formem frases com cinco palavras, cada palavra começando com uma dessas letras nessa ordem. Eva caminhou incandescente totalmente omissa. Eu comi indefinível torta ouro. Eram comparsas intocáveis todos os outros. Eles combateram incitando todo o ódio.

O acaso pode ajudar a que palavras se encontrem de modo incomum. O acaso favorece a poesia. Gonçalo lembrou Arthur Ribaud, “poesia é o encontro raro entre palavras”. Nesse sentido, a poesia é o oposto do lugar comum. “A Literatura é o combate ao lugar comum”.

O escritor precisa treinar os músculos da linguagem, precisa treinar como a linguagem resolve problemas. O jogo de letras ao acaso é uma equação de primeiro grau. Não tivemos a oportunidade de estudar as equações de segundo e terceiro grau, quando, além da primeira letra, a frase seria limitada pelo contexto e pela narrativa. Ces´t dommage. Lembro o francês porque ele lembrou a OuLiPo e a OuLiPo surgiu na França. Como sempre, a Wikipédia me socorre: “OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como oficina de literatura potencial) é uma corrente literária formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura, aparentemente de maneira paradoxal, através de constrangimentos literários”.

Minhas ultimas anotações reforçam todo o resto. É o Gonçalo falando devagar, suave, como quem não precisa alardear a verdade nem se jacta de conhecê-la.

Se eu quero treinar a escrita, devo treinar o olhar.
Se eu quero mudar a escrita, devo mudar o olhar.
Escrever é olhar.
Tenho algo a dizer de novo, quando olho de modo diferente.
Viajar, portanto, é escrever.
Experimentar coisas novas é escrever.

Foi aplaudido. Mesmo do que o merecido, éramos poucos. Seria necessária uma multidão. A tarde ele iria dizer que cultura se faz aos poucos. É preciso tempo para escrever e para fazer cultura. “Eu não pesco à rede, pesco à linha.” Lembraria as palavras de Cristo, no Evangelho. Pedi à futura cineasta que antes havia repousado em mim o seu olhar para tirar uma foto.

Saí da oficina olhando para tudo de modo diferente.

Obrigado, Gonçalo M. Tavares!



segunda-feira, 10 de abril de 2017

Uma praça virtual

As redes sociais, como o facebook, são uma ferramenta de comunicação que ainda estamos aprendendo a usar. Ninguém sabe ao certo o que é isso nem pra que serve (ou servirá). Estamos descobrindo juntos. Muito interessante termos a oportunidade de participar disso.

O certo é que o meio muda a forma e conteúdo da comunicação. Havia um tempo em que as pessoas falavam muito por cartas. Algumas coisas só eram ditas por cartas, mesmo entre pessoas que morassem na mesma casa. Aliás, quem me ensinou isso foi Standhal, em O vermelho e o negro. Quando o li, fiquei nostálgico. Lembro que tentei, por diversas vezes, manter uma correspondência com vários amigos, aqueles com quem sempre falava ao telefone. Não vingou.

Ainda hoje, há coisas que só podem ser ditas por cartas ou que ficam muito melhores ditas por cartas. Como não escrevemos mais cartas, essas coisas deixaram de ser ditas. A determinada altura, resolvi escrever cartas para a minha filha. Converso muito com ela assim, embora ela converse pouco comigo... :-). Os jovens pensam rápido, têm pressa e eu não sou mais tão jovem.

O telefone dispensou as cartas. O e-mail mudou tudo. E o WhatsApp, de novo, mudou o jeito com que falamos ao telefone. Tá todo mundo ligado e nos damos ao luxo de comunicar coisas que não comunicaríamos antes. Seria muito caro, inapropriado ou impossível. Como isso aqui que estou fazendo. Para quem eu escreveria uma carta com este conteúdo? Para quem ligaria falando estas coisas meio sem nexo?

Nas redes sociais, coisas banais se misturam a discussões políticas, que num instante se transformam em arengas. A intimidade vai da fome a reflexões existenciais passando pelos gostos. Ainda não conseguimos graduar nossa exposição no ponto ótimo. É tudo novo. Às vezes o filme sai queimado; outras vezes, escuro demais.

Essa besteirada toda do facebook às vezes nos entedia, mas também areja. Vemos as pessoas, lemos as notícias, ouvimos as fofocas. Falamos de coisas sérias e de bobagens. O facebook se parece muito com uma praça de cidade do interior. Toda cidade do interior tem a sua pracinha. Em Quixadá, todas as noites íamos pra praça ver as pessoas, conversar bobagens e coisas sérias, saber das novidades. Quem é este? Fulano. Conhece de onde? Da praça.


Há pessoas maravilhosas que conheci na praça de Quixadá. Papos incríveis. Minha relação com algumas dessas pessoas nunca se aprofundou. A praça sintetizava e moldava nossa comunicação. Hoje não temos mais a praça, temos o facebook.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Abismo


















Ao Dimas Macêdo



Estiveste na beirada do abismo, oh poeta!
De lá divisaste as maravilhas da 
Pobre e esplendorosa alma humana

Suas profundezas abissais 
Os picos recobertos da neve mais branca
Onde o frio congela a ternura
E o vento fustiga dúvidas atrozes

De pé encaraste mistérios tremendos
O olhar transido e extenuado de vida
Perdido na bruma, pisaste o exato limite 
Entre teu ser e tudo que o transcende

Mais um passo era o Nada
Ninguém escapa ileso, oh poeta!
Tu traz os olhos vazados de luz
E os lábios ressecados de morte

Da beirada do abismo cantas o inefável
Anuncia profético o que nossos olhos 
Medrosos não se arriscariam a mirar
Mas nosso coração anseia em frêmito

Ah, covardes! Refugamos os desvãos da alma!
Cegos para as maravilhas do mundo
Tu és, poeta, nossos olhos

Onde só temos casca
Tu és, poeta, nossa pele
Sentimos em ti o gelo que queima
E o frio dilacerante do sol

Dois anjos te seguram ao pé do abismo
Um deles canta, o outro grita
A tua alucinação, poeta, é nosso consolo
Nas noites escuras somos nós em ti
Nas promessas do dia és tu em nós

Nagibe de Melo Jorge Neto

terça-feira, 28 de março de 2017

Janela

Estou sentado ao lado de uma pequena janela de vidro. Em cada fila de duas cadeiras, há uma janela. Já viajei durante muito tempo no corredor, quando me esticava para ver lá fora. Há algum tempo consegui sentar junto à janela. É maravilhoso, o vento bate no meu rosto, assanha os cabelos e resseca meus olhos. Quando esfria demais ou quando há muita fumaça sou obrigado a fechar a janela e me distrair com algo aqui dentro. Esqueço a janela. Aqui, não há assentos marcados, vamos nos acomodando como calha.
O trem anda ora rápido, ora devagar. De quando em quando, para nalguma estação. Vejo as pessoas vendendo e comprando, o movimento agitado nas grandes plataformas, a emoção das chegadas e das despedidas, os acenos. Alguns homens, mulheres e crianças carregam bagagens imensas. O movimento tedioso nos pequenos lugares, um cachorro boceja, um homem agasalhado espera sozinho.
As paisagens jamais se repetem. Há campos floridos e desertos, há névoas densas, há noite estrelada sobre uma imensa planície. A lua clara ilumina as montanhas ao fundo. Muitos dormem, muitos dormem. Eu tento acordá-los, mostrar a beleza dalgum lugar, um cervo que corre. Muitas vezes me exasperei tentando mostrar um imenso lago, o belo, o fantástico, o absurdo. Tudo passa pela janela deste imenso trem que é como o tempo, não se detém.
Com a idade, decidi aproveitar mais a viagem. Não incomodo mais as pessoas querendo lhes mostrar isso ou aquilo. Recostado na cadeira, silencio ante o mundo que se transforma à minha janela. Fico maravilhado com o que vejo. Algumas vezes é sublime; outras, terrível. Silencio. Aos poucos vou descobrindo que é impossível mostrar a paisagem para alguém. É impossível. Cada um vê diferente.