Escrever pode mudar tudo.


domingo, 16 de novembro de 2014

Fora de Esquadro

Entrou no apartamento. Poeira e escombros. A reforma havia começado há exatos nove dias. Como sempre, estava arrependida, mas não podia mais voltar atrás. Precisava continuar nadando para alcançar a outra margem ou um navio que passe para lhe salvar. Quem? Não entendia nada de projetos. Gastou o que não tinha e viu a viagem do final do ano, a primeira que faria em muitos anos, pisada pelo pedreiro e dois serventes. Onde estava o copo? Não havia mais o seu copo, havia alguns copos coletivos, copos de todo mundo. Vinha-lhe a advertência da mãe. Beba no seu copo! Só no seu copo! É uma questão de higiene, minha filha. Quarenta e oito anos depois ainda lembrava dos conselhos da mãe, como se um ferro quente tivesse marcado aquilo bem fundo em alguma parte que ela não conseguia reformar. Estivesse a pia ainda no lugar lavaria o copo, mas a sede, a bagunça e os copos meio empoeirados lhe convenceram a beber no mais limpo, no mais perto, no que conseguisse encontrar, no que estivesse sobrando. Deveria haver uma vantagem, a imunidade sempre aumenta. A cozinha e dois banheiros, o bastante para ocasionar tudo aquilo.

O pedreiro já estava muito à vontade depois dos três primeiros dias, já ficava sem camisa e cantarolava o tempo todo. Entrava em uma casa que não lhe pertencia mais. “Ela não anda... ela desfila...”. De quem era a música? Até gostava da música. Estava fora de si, fora desalojada, como se a reforma remexesse também na sua estrutura psíquica, na sua alma. Lidar com pessoas, não sabia lidar com pessoas, não sabia mandar, se impor, pedir, ordenar, não sabia conversar, não sabia o que fazer, não sabia nada, queria ficar sozinha, no quarto, o refúgio tranquilo em meio à tormenta, queria acabar com tudo aquilo, queria desaparecer. Mas ia ficar lindo, foi o que a arquiteta disse. Estava tudo velho, como sua vida, como sua rotina, que era velha mas fazia falta, queria de volta sua rotina e sua privacidade e sua cozinha. Queria de volta o homem que nunca teve, mas a reforma não ia mudar nada disso. Era uma capa, um revestimento, uma mentira, uma desculpa, uma satisfação. Para quem? Raramente recebia visitas. A quem você quer mesmo impressionar? Satisfação para ela mesma, não se deixaria envelhecer como uma mulher desleixada, sem vaidade, como alguém a quem o tempo e os amigos esqueceram, como alguém esquecida pelos próprios móveis, pelos armários, pelo quarto. Cupim e mofo em toda a madeira. Tudo precisava de sol, ela precisava de sol e de mar, precisava sair dali, precisava acabar com aquela maldita reforma, precisava viajar, precisava conversar, precisava de alguém com quem dividisse aquela maldita reforma e a sua vida.

Aos poucos foi se reconstruindo tudo. Primeiro o piso, depois as paredes, as cerâmicas, uma a uma, encontrando seus lugares. O rejuntamento. A pintura. Os cortes, os encaixes, as quebras, as perdas, o barulho da maquita. Sua vida que se revolvida em meio à poeira. E aos poucos tudo foi ficando calmo e diferente. Alguém limpou a poeira, ela contratou alguém para limpar tudo. Aos poucos um dos serventes deixou de vir, depois o outro. Finalmente pagou o pedreiro, o pedreiro se foi deixando algumas pequenas coisas por terminar, mas deixava-a, devolvia sua solidão. Já não tinha mais festa, nem música, nem homem sem camisa em casa. E, aos poucos, chegaram os carpinteiros, mais barulho. Dessa vez guardou um copo em seu quarto. O seu copo. Levou água, trouxe para lá algumas frutas secas e biscoitos, vez um refúgio, estava preparada.

Aos poucos ficou tudo pronto e diferente. Então abateu-se-lhe um desconforto como se houvessem mexido em seus nervos, nos seus miolos. Não sabia mais os lugares, não encontrava mais os potes e as vasilhas, perdeu o ponto do café. Estava tudo bonito, mas ela ainda estava deslocada, não era mais o seu lugar, teve medo de não se adaptar e de ter perdido definitivamente a chance de ser aquela velha esquecida pelos móveis e por todo mundo, mas em paz. Perdeu a viagem e começaram a aparecer os detalhes, os massacrantes detalhes, prateleiras muito altas, outras muito baixas, onde bateu a cabeça, uma dor lancinante e aguda lhe fez esquecer, por um átimo, de tudo, até lembrar-se das cerâmicas desencontradas, uma poucas, em cima, no encontro do teto, ninguém daria atenção, mas ela sabia, ela via.

Chegava na cozinha e a primeira coisa que via era aquele espaço exagerado entre a cerâmica e forro. Nunca reparou no teto, mas agora era só entrar na cozinha e lá estava: também entre os móveis e o teto ficou um espaço, um vazio sem sentido, parecia imenso. O mesmo com o espelho do lavabo, logo o lavabo das visitas! Um espelho imenso, majestoso, um espelho perfeito, de cristal bisotado. Não encaixou, não se ajustou na parede entre o teto e a pedra de mármore, como ela tantas vezes não conseguira se ajustar. Na parte de baixo, ficou um pouquinho levantado, sacado da parece, forçado por algumas imperfeições que ela não sabia se eram do mármore ou da sua vida, ou foram da reforma. Alguém errou. Não ficou bom, definitivamente não ficou bom. Aquilo denunciava o erro, sua precipitação, sua falta de preparo, sua incompetência, sua solidão, era o seu vazio. Chamou de novo o carpinteiro. Chamaria também o vidraceiro, o pedreiro, chamaria até um engenheiro, chamaria um homem que pudesse consertar tudo aquilo. Exigiria o conserto sem custos. Não era admissível que o dinheiro e a viagem houvessem sido inutilmente perdidos, estava tudo imperfeito como antes. Novo, mas imperfeito. Ela continuava desalojada de si.

Fora de esquadro. Disse-lhe o carpinteiro. Fora de esquadro? A parede, senhora. A parede está fora de esquadro. É um problema da construção do prédio, se encosto de um lado, o espaço aparece do outro. Não posso consertar. Enquanto conversavam na cozinha, um estrépito agudo avisou que o espelhou quebrou-se no banheiro, não resistiu à pressão. Como assim? Ela perguntou. Fora de esquadro. Ele respondeu, como se fosse simples entender. Como minha vida, ela pensou. Fora de esquadro.


sábado, 1 de novembro de 2014

Alemanha Inusitada



A imagem que tenho da Alemanha era, e ainda é, a do lugar onde tudo funciona, onde as pessoas são altamente educadas, terra da Filosofia e da Música, primeira economia da Europa. O alemão é racional, detalhista, metódico e adora cerveja! Podem dizer que é uma gente fria, mas eles têm sensibilidade musical de Bach e, se alguém ouvir os Concertos de Brandemburgo prestando atenção, duvido que não se sinta tocado.

Contudo, algumas coisas me surpreenderam na Alemanha. Viajar, afinal, não é se deixar surpreender? Os alemães parecem bastante austeros, mas feiura nada tem a ver com austeridade. Tegel, em Berlim, é um aeroporto feio, como a dizer que não fazem gastos desnecessários. As pessoas andam muito de bicicleta e, quando estacionam, usam cadeados. Parece que furtam bicicletas por lá! Mas, muito provavelmente devolvem pertences perdidos. Perdemos a bolsa em um táxi: oitocentos euros, cartões de crédito, tudo. E a recuperamos! O taxista, cortesmente, levou sua mulher, que falava inglês, até o hotel e nos devolver a bolsa com um sorriso.

A Berliner Philarmoniker tem um edifício modernoso às margens do Tiergarten, ambulantes vendendo pretzels na entrada do concerto e todo mundo comendo pretzels na entrada do concerto, aquele pão enorme segurado por um pequeno guardanapo por pessoas vestindo ternos, tailleurs e sobretudos era como uma divertida nota dissonante. Providencial, estávamos com fome. Vinho e cerveja, só se vende lá dentro e tem que ser rápido, todo mundo animado, toca a sirene, aos seu lugares, o concerto vai começar.

Uma das vantagens de assistir uma orquestra ao vivo, com seus quase cem músicos, é que realmente prestamos atenção à música, nota por nota, compasso por compasso, os gestos do maestro e a resposta da orquestra. Also sprach Zarathustra nunca soou mais forte e o final, como um coração parando de bater aos poucos, mais significativo.




Visitamos o muro de Berlim ou o que restou dele, a East Side Gallery. Já era quase noite quando chegamos. Três ou quatro metros de altura, ainda bastante sólido, não parecia ameaçador mas guardava um ar sombrio ora atenuado ora realçado pelas pinturas com temas que retratavam a queda. Algumas pessoas fotografavam, outras simplesmente passeavas. Eu imaginei todos ali cantando The Wall, abraçando uns aos outros emocionados, ainda festejando a queda do muro e tudo que nos separa. Talvez aquelas pessoas imaginassem ou pensassem em algo parecido, mas ficaram surpresas quando me pus a dançar e a cantarolar.

Também há greves na Alemanha! Pegamos uma greve de trens. Tudo parado e a passagem que havíamos comprado para Dresden foi pro espaço. Alugamos um carro. O staff do hotel, muito atencioso, resolveu tudo. Devíamos pegar o carro no aeroporto. Ao chegarmos lá... surpresa! Não havia carro! Nada melhor que ser enganado ou, pelo menos, vítima de uma falha no agendamento de aluguel de um carro na Alemanha. Essa experiência com certeza é única. Devo dizer que já nos devolveram o dinheiro, mas tive que fazer uma reclamação quando cheguei no Brasil, não foi lá, assim na hora, de forma alemã.

Acabamos indo de ônibus para Dresden e eu, amarguradamente, deixei de conhecer as famosas autobahns alemãs, onde não há limite de velocidade. O ônibus é confortável e o motorista faz tudo: vende as passagens, acomoda as malas, fala ao microfone indicando a próxima parada e opera uns três aparelhos eletrônicos entre tablets e gps’s. A rodoviária é pior que a estação de trem que é pior que o aeroporto. Acho que essa gradação é universal. O ônibus para em todo lugar para pegar gente, mas todos vão confortavelmente sentados e os horários são cumpridos. Lembrei do pinga-pinga pra Quixadá, só que aqui muitas vezes eu ia em pé, um calor desgraçado.


 Dresden é uma cidade singular, absolutamente fantástica, linda. Talvez estivéssemos muito influenciados pelo céu absolutamente azul e o sol morno de uma tarde outonal que banhava em tons dourados os magníficos edifícios às margens do Elba. O Brühl`s Terrace deve ser um dos lugares mais lindos e agradáveis da Europa. Passear por lá me deu a sensação de ter entrado no sonho de alguém, o mundo real estava em outro lugar para além da cidade antiga. Dresden está para o séc. XVIII, como Florença e Veneza estão para o séc. XVI.

Voltando para o hotel à noite, perto da praça da catedral de Dresden, ouvimos o som de um canto lírico, um som distante, mas que era ouvido claramente pelo silêncio da noite. Eu pensava que os alemães eram mais respeitosos e silenciosos quando se tratava de volumes. Já era tarde para um vizinho ouvir ópera àquela altura. Chegando na praça percebemos, contudo, que era um casal de cantores líricos, elegantemente vestidos, que fazia sua apresentação na rua, em troca de gorjetas. Revezavam duetos e árias para o público que se juntava e se dispersava nos intervalos, quando eles bebiam água.


Assumimos nossa posição em um restaurante na praça antiga e ficamos assistindo ao espetáculo, de vez em quando questionando abobalhados se era mesmo a voz daquele casal que produzia aqueles sons cristalinos à uma distância de cinquenta metros. Não havia caixa de som. A catedral parecia ecoar as vozes e todo o conjunto arquitetônico servia como amplificador.

No dia seguinte, trem para Leipzig, onde assistimos a um concerto de órgão na Thomaskirche, a mesma igreja onde Bach regeu por 27 anos. Antes do concerto, uma aula do professor doutor bam-bam-bam de música da Universidade de Leipzig, chata e minudente como eu esperava que fosse uma aula alemã, pelo menos para quem não é capaz de entender as piadas que eu sabia, pelos risos da plateia, que ele de  vez enquanto contava. A música me decepcionou um pouco, eu esperava música barroca e o negócio parecia música moderna com tantos contrapontos, fugas, variações de escala e dissonâncias. Eu olhava para o programa incrédulo: era tudo música do século XVIII. Muito irado! Acho que Bach era um roqueiro do órgão.

Tocamos de trem para Bamberg, uma cidade medieval tombada pela Unesco onde existem cerca de dez cervejarias artesanais. Consegui experimentar duas. Bem que tentei degustar as demais, mas, como cada uma tem graduação alcóolica entre dez e doze por cento, tive mesmo que escolher entre beber e conhecer a cidade antiga. Na catedral de Bamberg está enterrado o papa Clemente II, e o casal de santos imperadores Henrique II e sua esposa Cunegundes. Bamberg é desses lugares que nos levam a pensar como era a vida na Idade Média, como naquela época, com aquele frio, o povo conseguia construir edifícios como o Monastério de São Michael e a Catedral de São Pedro e São Jorge.


 Das coisas mais interessantes quando se espera um trem na Alemanha é a precisão com que ele chega. Se o horário é 09:40, às 09:39 na plataforma só se enxergam os trilhos, até a curva mais próxima. De repente, chega o trem, exatamente às 09:40. Pois dessa vez, o trem para Würtzburg atrasou. Impagável o trem atrasar por mais de uma hora na Alemanha! A mesma tempestade que deixou todo o hotel sem luz na véspera e nos obrigou a dormir à lua de velas, bagunçou o horários de todos os trens. Trocamos as passagens e, depois de pegar o trem errado, fomos parar em Bad Staffelstein, uma instância termal de águas salgadas com uma estação perdida no meio do nada, ou melhor, no meio do frio. Chegamos em Frankfurt cinco horas depois, mas garanto que se perder nos trilhos alemães tem seus prazeres.

Para que a Alemanha não pareça mais alemã do que é, devo dizer que há mendigos em Berlim. Poucos, mas há. Em Frankfurt há mais. Uma mulher com uma criança nos pediu dinheiro dentro de uma Starbucks na Goethplatz. Outra, loira, olhos azuis, bem alemã, nos abordou em um café, dizia, em inglês, que tinha fome. A não ser pelos tênis muito velhos, pela calça de moletom cinza mais suja que o normal e uma certa agitação de quem tem vergonha, não se podia dizer que ela passava necessidade.



As margens do Meno são capazes de tirar qualquer um do corre-corre da cidade grande e abrir os olhos mais tensos às belezas do outono. O Städel Museum vale uma visita, aliás, vale muitas visitas. Não é o Louvre, não é o D’Orsay, mas tem seus encantos, um encanto de quem é austero até na hora de encantar. Frankfurt é cosmopolita, tem um colônia turca bem presente, alguns taxistas são imigrantes, como em Nova York e a catedral é linda, mas austera. Construída entre os séculos XIV e XV, lá se sagraram muitos dos imperadores romanos germânicos.

O suco de maça é simplesmente delicioso, vendido em todo lugar e de todas as formas, mas água de coco é melhor. Pena que não temos tecnologia, investimento ou vontade para fazer o mesmo com o caju. Uma repaginada na cajuína e ela venderia como água.


Resumo da ópera: a Alemanha é mais alemã que imaginava em algumas coisas e menos em outras. Há greves, mendigos e as pessoas receiam furtos de bicicletas, mas devolvem bolsas, sobretudo se houver dinheiro e documentos dentro. Os trens são bons e atrasam de vez em quando e você pode se ver sem o carro por cujo aluguel já havia pago. Lá não há cerveja ruim. Eu, pelo menos, não consegui encontrar. E olhe que procurei um bocado!