Escrever pode mudar tudo.


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Começo

Não sei por onde começar. Então, começo por qualquer lugar porque o fim é sempre um recomeço e os começos já trazem em si o fim. 

Talvez o tempo seja um novelo, um linha bem enrolada, uma linha que, quando estirada, tem começo, meio e fim. O tempo é uma linha enrolada em torno de si mesma, muitos começos se juntam a muitos meios e fins. Tudo comprimido, retorcido, embaraçado.

Não sei por onde começar. Corto a linha e estico o tempo. O meu tempo. Eu escolho um começo e posso fazer dos fins novos começos. Hesito. Não sei onde cortar. Roço a tesoura ao longo do fio e, meio displicente, pressiono a lâmina. Pronto. Fez-se um começo.

domingo, 16 de novembro de 2014

Fora de Esquadro

Entrou no apartamento. Poeira e escombros. A reforma havia começado há exatos nove dias. Como sempre, estava arrependida, mas não podia mais voltar atrás. Precisava continuar nadando para alcançar a outra margem ou um navio que passe para lhe salvar. Quem? Não entendia nada de projetos. Gastou o que não tinha e viu a viagem do final do ano, a primeira que faria em muitos anos, pisada pelo pedreiro e dois serventes. Onde estava o copo? Não havia mais o seu copo, havia alguns copos coletivos, copos de todo mundo. Vinha-lhe a advertência da mãe. Beba no seu copo! Só no seu copo! É uma questão de higiene, minha filha. Quarenta e oito anos depois ainda lembrava dos conselhos da mãe, como se um ferro quente tivesse marcado aquilo bem fundo em alguma parte que ela não conseguia reformar. Estivesse a pia ainda no lugar lavaria o copo, mas a sede, a bagunça e os copos meio empoeirados lhe convenceram a beber no mais limpo, no mais perto, no que conseguisse encontrar, no que estivesse sobrando. Deveria haver uma vantagem, a imunidade sempre aumenta. A cozinha e dois banheiros, o bastante para ocasionar tudo aquilo.

O pedreiro já estava muito à vontade depois dos três primeiros dias, já ficava sem camisa e cantarolava o tempo todo. Entrava em uma casa que não lhe pertencia mais. “Ela não anda... ela desfila...”. De quem era a música? Até gostava da música. Estava fora de si, fora desalojada, como se a reforma remexesse também na sua estrutura psíquica, na sua alma. Lidar com pessoas, não sabia lidar com pessoas, não sabia mandar, se impor, pedir, ordenar, não sabia conversar, não sabia o que fazer, não sabia nada, queria ficar sozinha, no quarto, o refúgio tranquilo em meio à tormenta, queria acabar com tudo aquilo, queria desaparecer. Mas ia ficar lindo, foi o que a arquiteta disse. Estava tudo velho, como sua vida, como sua rotina, que era velha mas fazia falta, queria de volta sua rotina e sua privacidade e sua cozinha. Queria de volta o homem que nunca teve, mas a reforma não ia mudar nada disso. Era uma capa, um revestimento, uma mentira, uma desculpa, uma satisfação. Para quem? Raramente recebia visitas. A quem você quer mesmo impressionar? Satisfação para ela mesma, não se deixaria envelhecer como uma mulher desleixada, sem vaidade, como alguém a quem o tempo e os amigos esqueceram, como alguém esquecida pelos próprios móveis, pelos armários, pelo quarto. Cupim e mofo em toda a madeira. Tudo precisava de sol, ela precisava de sol e de mar, precisava sair dali, precisava acabar com aquela maldita reforma, precisava viajar, precisava conversar, precisava de alguém com quem dividisse aquela maldita reforma e a sua vida.

Aos poucos foi se reconstruindo tudo. Primeiro o piso, depois as paredes, as cerâmicas, uma a uma, encontrando seus lugares. O rejuntamento. A pintura. Os cortes, os encaixes, as quebras, as perdas, o barulho da maquita. Sua vida que se revolvida em meio à poeira. E aos poucos tudo foi ficando calmo e diferente. Alguém limpou a poeira, ela contratou alguém para limpar tudo. Aos poucos um dos serventes deixou de vir, depois o outro. Finalmente pagou o pedreiro, o pedreiro se foi deixando algumas pequenas coisas por terminar, mas deixava-a, devolvia sua solidão. Já não tinha mais festa, nem música, nem homem sem camisa em casa. E, aos poucos, chegaram os carpinteiros, mais barulho. Dessa vez guardou um copo em seu quarto. O seu copo. Levou água, trouxe para lá algumas frutas secas e biscoitos, vez um refúgio, estava preparada.

Aos poucos ficou tudo pronto e diferente. Então abateu-se-lhe um desconforto como se houvessem mexido em seus nervos, nos seus miolos. Não sabia mais os lugares, não encontrava mais os potes e as vasilhas, perdeu o ponto do café. Estava tudo bonito, mas ela ainda estava deslocada, não era mais o seu lugar, teve medo de não se adaptar e de ter perdido definitivamente a chance de ser aquela velha esquecida pelos móveis e por todo mundo, mas em paz. Perdeu a viagem e começaram a aparecer os detalhes, os massacrantes detalhes, prateleiras muito altas, outras muito baixas, onde bateu a cabeça, uma dor lancinante e aguda lhe fez esquecer, por um átimo, de tudo, até lembrar-se das cerâmicas desencontradas, uma poucas, em cima, no encontro do teto, ninguém daria atenção, mas ela sabia, ela via.

Chegava na cozinha e a primeira coisa que via era aquele espaço exagerado entre a cerâmica e forro. Nunca reparou no teto, mas agora era só entrar na cozinha e lá estava: também entre os móveis e o teto ficou um espaço, um vazio sem sentido, parecia imenso. O mesmo com o espelho do lavabo, logo o lavabo das visitas! Um espelho imenso, majestoso, um espelho perfeito, de cristal bisotado. Não encaixou, não se ajustou na parede entre o teto e a pedra de mármore, como ela tantas vezes não conseguira se ajustar. Na parte de baixo, ficou um pouquinho levantado, sacado da parece, forçado por algumas imperfeições que ela não sabia se eram do mármore ou da sua vida, ou foram da reforma. Alguém errou. Não ficou bom, definitivamente não ficou bom. Aquilo denunciava o erro, sua precipitação, sua falta de preparo, sua incompetência, sua solidão, era o seu vazio. Chamou de novo o carpinteiro. Chamaria também o vidraceiro, o pedreiro, chamaria até um engenheiro, chamaria um homem que pudesse consertar tudo aquilo. Exigiria o conserto sem custos. Não era admissível que o dinheiro e a viagem houvessem sido inutilmente perdidos, estava tudo imperfeito como antes. Novo, mas imperfeito. Ela continuava desalojada de si.

Fora de esquadro. Disse-lhe o carpinteiro. Fora de esquadro? A parede, senhora. A parede está fora de esquadro. É um problema da construção do prédio, se encosto de um lado, o espaço aparece do outro. Não posso consertar. Enquanto conversavam na cozinha, um estrépito agudo avisou que o espelhou quebrou-se no banheiro, não resistiu à pressão. Como assim? Ela perguntou. Fora de esquadro. Ele respondeu, como se fosse simples entender. Como minha vida, ela pensou. Fora de esquadro.


sábado, 1 de novembro de 2014

Alemanha Inusitada



A imagem que tenho da Alemanha era, e ainda é, a do lugar onde tudo funciona, onde as pessoas são altamente educadas, terra da Filosofia e da Música, primeira economia da Europa. O alemão é racional, detalhista, metódico e adora cerveja! Podem dizer que é uma gente fria, mas eles têm sensibilidade musical de Bach e, se alguém ouvir os Concertos de Brandemburgo prestando atenção, duvido que não se sinta tocado.

Contudo, algumas coisas me surpreenderam na Alemanha. Viajar, afinal, não é se deixar surpreender? Os alemães parecem bastante austeros, mas feiura nada tem a ver com austeridade. Tegel, em Berlim, é um aeroporto feio, como a dizer que não fazem gastos desnecessários. As pessoas andam muito de bicicleta e, quando estacionam, usam cadeados. Parece que furtam bicicletas por lá! Mas, muito provavelmente devolvem pertences perdidos. Perdemos a bolsa em um táxi: oitocentos euros, cartões de crédito, tudo. E a recuperamos! O taxista, cortesmente, levou sua mulher, que falava inglês, até o hotel e nos devolver a bolsa com um sorriso.

A Berliner Philarmoniker tem um edifício modernoso às margens do Tiergarten, ambulantes vendendo pretzels na entrada do concerto e todo mundo comendo pretzels na entrada do concerto, aquele pão enorme segurado por um pequeno guardanapo por pessoas vestindo ternos, tailleurs e sobretudos era como uma divertida nota dissonante. Providencial, estávamos com fome. Vinho e cerveja, só se vende lá dentro e tem que ser rápido, todo mundo animado, toca a sirene, aos seu lugares, o concerto vai começar.

Uma das vantagens de assistir uma orquestra ao vivo, com seus quase cem músicos, é que realmente prestamos atenção à música, nota por nota, compasso por compasso, os gestos do maestro e a resposta da orquestra. Also sprach Zarathustra nunca soou mais forte e o final, como um coração parando de bater aos poucos, mais significativo.




Visitamos o muro de Berlim ou o que restou dele, a East Side Gallery. Já era quase noite quando chegamos. Três ou quatro metros de altura, ainda bastante sólido, não parecia ameaçador mas guardava um ar sombrio ora atenuado ora realçado pelas pinturas com temas que retratavam a queda. Algumas pessoas fotografavam, outras simplesmente passeavas. Eu imaginei todos ali cantando The Wall, abraçando uns aos outros emocionados, ainda festejando a queda do muro e tudo que nos separa. Talvez aquelas pessoas imaginassem ou pensassem em algo parecido, mas ficaram surpresas quando me pus a dançar e a cantarolar.

Também há greves na Alemanha! Pegamos uma greve de trens. Tudo parado e a passagem que havíamos comprado para Dresden foi pro espaço. Alugamos um carro. O staff do hotel, muito atencioso, resolveu tudo. Devíamos pegar o carro no aeroporto. Ao chegarmos lá... surpresa! Não havia carro! Nada melhor que ser enganado ou, pelo menos, vítima de uma falha no agendamento de aluguel de um carro na Alemanha. Essa experiência com certeza é única. Devo dizer que já nos devolveram o dinheiro, mas tive que fazer uma reclamação quando cheguei no Brasil, não foi lá, assim na hora, de forma alemã.

Acabamos indo de ônibus para Dresden e eu, amarguradamente, deixei de conhecer as famosas autobahns alemãs, onde não há limite de velocidade. O ônibus é confortável e o motorista faz tudo: vende as passagens, acomoda as malas, fala ao microfone indicando a próxima parada e opera uns três aparelhos eletrônicos entre tablets e gps’s. A rodoviária é pior que a estação de trem que é pior que o aeroporto. Acho que essa gradação é universal. O ônibus para em todo lugar para pegar gente, mas todos vão confortavelmente sentados e os horários são cumpridos. Lembrei do pinga-pinga pra Quixadá, só que aqui muitas vezes eu ia em pé, um calor desgraçado.


 Dresden é uma cidade singular, absolutamente fantástica, linda. Talvez estivéssemos muito influenciados pelo céu absolutamente azul e o sol morno de uma tarde outonal que banhava em tons dourados os magníficos edifícios às margens do Elba. O Brühl`s Terrace deve ser um dos lugares mais lindos e agradáveis da Europa. Passear por lá me deu a sensação de ter entrado no sonho de alguém, o mundo real estava em outro lugar para além da cidade antiga. Dresden está para o séc. XVIII, como Florença e Veneza estão para o séc. XVI.

Voltando para o hotel à noite, perto da praça da catedral de Dresden, ouvimos o som de um canto lírico, um som distante, mas que era ouvido claramente pelo silêncio da noite. Eu pensava que os alemães eram mais respeitosos e silenciosos quando se tratava de volumes. Já era tarde para um vizinho ouvir ópera àquela altura. Chegando na praça percebemos, contudo, que era um casal de cantores líricos, elegantemente vestidos, que fazia sua apresentação na rua, em troca de gorjetas. Revezavam duetos e árias para o público que se juntava e se dispersava nos intervalos, quando eles bebiam água.


Assumimos nossa posição em um restaurante na praça antiga e ficamos assistindo ao espetáculo, de vez em quando questionando abobalhados se era mesmo a voz daquele casal que produzia aqueles sons cristalinos à uma distância de cinquenta metros. Não havia caixa de som. A catedral parecia ecoar as vozes e todo o conjunto arquitetônico servia como amplificador.

No dia seguinte, trem para Leipzig, onde assistimos a um concerto de órgão na Thomaskirche, a mesma igreja onde Bach regeu por 27 anos. Antes do concerto, uma aula do professor doutor bam-bam-bam de música da Universidade de Leipzig, chata e minudente como eu esperava que fosse uma aula alemã, pelo menos para quem não é capaz de entender as piadas que eu sabia, pelos risos da plateia, que ele de  vez enquanto contava. A música me decepcionou um pouco, eu esperava música barroca e o negócio parecia música moderna com tantos contrapontos, fugas, variações de escala e dissonâncias. Eu olhava para o programa incrédulo: era tudo música do século XVIII. Muito irado! Acho que Bach era um roqueiro do órgão.

Tocamos de trem para Bamberg, uma cidade medieval tombada pela Unesco onde existem cerca de dez cervejarias artesanais. Consegui experimentar duas. Bem que tentei degustar as demais, mas, como cada uma tem graduação alcóolica entre dez e doze por cento, tive mesmo que escolher entre beber e conhecer a cidade antiga. Na catedral de Bamberg está enterrado o papa Clemente II, e o casal de santos imperadores Henrique II e sua esposa Cunegundes. Bamberg é desses lugares que nos levam a pensar como era a vida na Idade Média, como naquela época, com aquele frio, o povo conseguia construir edifícios como o Monastério de São Michael e a Catedral de São Pedro e São Jorge.


 Das coisas mais interessantes quando se espera um trem na Alemanha é a precisão com que ele chega. Se o horário é 09:40, às 09:39 na plataforma só se enxergam os trilhos, até a curva mais próxima. De repente, chega o trem, exatamente às 09:40. Pois dessa vez, o trem para Würtzburg atrasou. Impagável o trem atrasar por mais de uma hora na Alemanha! A mesma tempestade que deixou todo o hotel sem luz na véspera e nos obrigou a dormir à lua de velas, bagunçou o horários de todos os trens. Trocamos as passagens e, depois de pegar o trem errado, fomos parar em Bad Staffelstein, uma instância termal de águas salgadas com uma estação perdida no meio do nada, ou melhor, no meio do frio. Chegamos em Frankfurt cinco horas depois, mas garanto que se perder nos trilhos alemães tem seus prazeres.

Para que a Alemanha não pareça mais alemã do que é, devo dizer que há mendigos em Berlim. Poucos, mas há. Em Frankfurt há mais. Uma mulher com uma criança nos pediu dinheiro dentro de uma Starbucks na Goethplatz. Outra, loira, olhos azuis, bem alemã, nos abordou em um café, dizia, em inglês, que tinha fome. A não ser pelos tênis muito velhos, pela calça de moletom cinza mais suja que o normal e uma certa agitação de quem tem vergonha, não se podia dizer que ela passava necessidade.



As margens do Meno são capazes de tirar qualquer um do corre-corre da cidade grande e abrir os olhos mais tensos às belezas do outono. O Städel Museum vale uma visita, aliás, vale muitas visitas. Não é o Louvre, não é o D’Orsay, mas tem seus encantos, um encanto de quem é austero até na hora de encantar. Frankfurt é cosmopolita, tem um colônia turca bem presente, alguns taxistas são imigrantes, como em Nova York e a catedral é linda, mas austera. Construída entre os séculos XIV e XV, lá se sagraram muitos dos imperadores romanos germânicos.

O suco de maça é simplesmente delicioso, vendido em todo lugar e de todas as formas, mas água de coco é melhor. Pena que não temos tecnologia, investimento ou vontade para fazer o mesmo com o caju. Uma repaginada na cajuína e ela venderia como água.


Resumo da ópera: a Alemanha é mais alemã que imaginava em algumas coisas e menos em outras. Há greves, mendigos e as pessoas receiam furtos de bicicletas, mas devolvem bolsas, sobretudo se houver dinheiro e documentos dentro. Os trens são bons e atrasam de vez em quando e você pode se ver sem o carro por cujo aluguel já havia pago. Lá não há cerveja ruim. Eu, pelo menos, não consegui encontrar. E olhe que procurei um bocado!

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Retorno de Laura

Laura acreditava que, no fundo, viajamos para voltar para casa, para nos sentir estrangeiros em nós mesmos e acolhidos na volta, para experimentar o estranhamento, para nos perder e nos reencontrar.

Era seu último dia em Berlim. Tomava café da manhã e esperava o vôo da noite. Uma mulher de preto tocava Tom Jobim ao piano de cauda, Wave. Laura lembrou de casa e teve uma sensação ruim, como se não adiantasse fugir. Estava presa em suas lembranças e, quando voltasse, seria como chegar em um lugar estranho. Serviu-se de uma taça de espumante, um riesling rosé da região do Reno, levemente adocicado, com uma secura que não a deixava esquecer a aridez de sua própria vida. Voltou ao seu lugar, ficou apreciando o movimento dos hóspedes. O piano começou trechos da Rapsody in Blue. Depois da separação, Laura decidiu viajar mais, sempre sozinha. Nesses momentos, sua fragilidade dava lugar à independência e ela parecia capaz de renunciar à sua prisão.

Berlim carregava as marcas do passado, como se o futuro não se sentisse à vontade ali. A torre de TV parecia saída dos filmes de ficção da década de setenta, a Ilha dos Museus abrigava um passado falso. O passado real estava enterrado sob o Memorial do Holocausto, Laura o havia visitado ontem. Algumas crianças brincavam com alegria entre os túmulos de pedra, escondiam-se, corriam e gritavam de felicidade. Esses sons, aos poucos, traziam Berlim para o presente. Era um pouco como Laura se sentia, em uma guerra surda entre um passado pesado gosmento e um futuro desconhecido. Depois de tantos anos casada, o seu passado eram os filhos, o mais novo acabara de entrar na universidade e queria ser médico como os pais. Laura tinha medo. A medicina lhe obrigou a fazer escolhas difíceis.

No final dos anos oitenta, quando ela decidiu fazer pós-graduação em São Paulo, decidiu também que não havia futuro no relacionamento com Carlos. Na época, Carlos Feijó pretendia fazer pós-graduação em literatura e estudar psicanálise na escola parisiense. Um sonho. No mundo de Laura não havia espaço para nada que não fosse minimamente concreto. Ela gostava de ouvir Feijó falar sobre literatura, contar e recortar a vida de Freud, mas aquilo combinava com fim de noite e o vinho barato que eles podiam comprar. De manhã ela tinha dor de cabeça e pressa de chegar na residência. No Brasil dos oitenta, literatura e psicanálise não podiam conduzir a nada palpável. O despojamento de Carlos, suas calças frouxas, sua barba por fazer, o cabelo por cortar, sua preocupação com um mundo que não era exatamente o que vivíamos encantavam Laura, mas também davam medo, como se ela contemplasse uma paisagem deslumbrante do alto de um abismo. Era preciso comer, ter filhos e sustentá-los.

Depois disso, Laura pouco ouviu falar do Carlos Feijó. Eles romperam sem drama. Ficou uma saudade amarga do que poderia ter sido, lembranças guardadas no mesmo lugar reservado às fantasias. Laura nunca soube ao certo o que havia vivido com Carlos, eram muito jovens e na juventude tudo passa rápido. Sabia apenas que ele se tornou professor de literatura brasileira em uma universidade alemã. Depois da separação ela pensava mais e mais em Carlos, como se procurasse uma explicação para o fracasso do casamento. Repassava o que poderia ter sido se tivesse embarcado com ele para uma especialização em Paris. Esses pensamentos eram um céu enevoado que atrapalhava o sol claro de sua vida, o sol de um dia azul de verão, onde era possível distinguir luz e sombra com exatidão.

Depois da separação, o céu ficou cinzento. Laura viajava para voltar à segurança daquele céu azul sem nuvens, mas sempre encontrava um chiaroscuro, como uma tela de Caravaggio em que a parte mais iluminada era também a mais pavorosa. Às vezes, ela tinha a impressão de ver a tela toda e constatava que havia beleza mesmo no temor e no desespero.

Esperou o final da Rapsody in Blue. Admirou o vão da recepção, o pé direito da altura dos nove andares do hotel, salpicado de vidros vermelhos. Resolveu se despedir da Nefertiti no Neues Museum. Há mais de três mil anos aquela mulher conservava um semblante altivo e resignado de quem sabe que o arrependimento pelas escolhas feitas não faz qualquer sentido. O destino não nos deixa escolha, ele se impõe e a vida talvez seja apenas um desdobramento das necessidades do destino.

O Neues Museum ficava a uma curta caminha do Eurostar Hotel. Ao atravessar a Planckstrasse, Laura deu com um imponente prédio, onde a solidez do mármore creme contrastava com a delicadeza de lâminas de vidro compridas e estreitas, parecia a sede de uma bem sucedida empresa financeira ou tecnológica. Ao se aproximar, viu, nas inscrições nos vidros da enorme porta giratória, que era um dos edifícios da Alexander von Humboldt Universitat. Havia um café no átrio com muitos alunos. Ela entrou. Viu a si mesma naqueles jovens, o mesmo destemor frente a vida, a mesma empolgação arrogante.  Atravessou devagar, captando a atmosfera dos estudantes. Saiu por outra porta giratória no final do imenso átrio.

- Laura!

Ela virou-se, já na calçada.

- Você é a Laura?

Um homem de cinquenta anos, magro, cabelos cheios, barba rala grisalha, desceu da bicicleta e foi se aproximando com um sorriso, um olhar maravilhado. Ela demorou a entender.

- Você lembra de mim? Sou eu, Carlos. O Feijó!

Ele falava como se ela estivesse acordando de um longo coma, testava se não teria havido sequelas depois de tanto tempo.

- Carlos. Ele repetiu.


Depois de alguns segundos, estendeu a mão. Ela tocou a mão velha e calejada, uma outra mão, não a do Carlos de trinta anos atrás. O toque era o mesmo, o mesmo calor. Só então ela se convenceu de que era ele. Abriu um sorriso, como se sua alma sorrisse inteira. As quatro mãos estavam unidas, a bicicleta no chão. Eles sorriam meio assustados. Era como se Laura estivesse finalmente voltando para casa.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Sobre Pai, Filho e Sementes

Quando eu era pequeno, meu pai era um super-herói, uma pessoa dotada de tantas qualidades intelectuais e morais que, ao mesmo tempo que me maravilhava, me oprimia. Meu pai sabia tudo, era o melhor em tudo, fazia tudo bem feito, era alto, forte e valente, às vezes muito valente, com uma fúria que destruía e recompunhas todas as coisas em seu devido lugar. Aos quatorze anos vi meu pai nu. Não sem roupa. Nu, nu, sem roupa, desde sempre o vira. Vi meu pai sem as suas vestes míticas de pessoa infalível. Vi meu pai como um ser humano ordinário. Foi uma decepção e um alívio: eu também podia ser ordinário.

A adolescência procura todos os defeitos dos pais e os coloca sob uma lente impiedosa. Talvez seja necessário, do contrário, não conseguiríamos conviver com o modelo perfeito que nos oprime ou não conseguiríamos escolher novos caminhos, os caminhos que nos levam para onde podemos ser nós mesmos. Aos poucos escolhi caminhos que acabaram por me afastar do meu pai, mas um distanciamento falso porque sempre o tive como referencia, contraponto, inspiração, oposto, marco, limite ou o que o valha. Exemplo do que fazer e do que não fazer, símbolo do que buscar e de onde fugir. Modelo em tantos pontos e antípoda em tantos outros. Descubro-me uma peça de tapeçaria tecida a partir do espelho que é meu pai, ora como um avesso perfeito, ora como uma simbiose confusa, ora com tonalidades esmaecidas, outras vezes com cores fortes, como se aquele primeiro modelo apenas tivesse sido renovado e houvessem tirados uns excessos daqui e postos outros acolá.

De modo que nunca conseguirei ser como ele nem nunca conseguirei ser diferente. Carrego meu pai em mim e aos poucos me acostumo e me alegro com isso, sorrio já mais placidamente ao perceber que jamais serei igual a ele em generosidade, no modo surpreendentemente leve que encara a vida em muitos momentos e já não me sinto mais obrigado em lhe atender as expectativas, ou o que o menino que ainda e sempre viverá em mim julga que são as expectativas dele. Ainda precisaria viver outro tanto para aprender com sua altivez e retidão de caráter, mas também com suas incoerências, pois como ele aprendi que até a incoerência, essa qualidade que nos lembra a fragilidade humana, muitas vezes é sinal de grandeza, sanidade e amor.

Rendo, portanto, essa singela homenagem ao meu pai, que cultivou tantas sementes em minha alma e sempre se esforçou para fazer germinar as melhores, algumas vezes a terra foi lenta, outras vezes, imprópria, mas ainda me surpreendo com árvores novas no meu quintal e quando lhes descubro as raízes, me vejo indissociavelmente ligado ao semeador.