Não sei por onde começar. Então, começo por qualquer lugar porque o fim é sempre um recomeço e os começos já trazem em si o fim.
Talvez o tempo seja um novelo, um linha bem enrolada, uma linha que, quando estirada, tem começo, meio e fim. O tempo é uma linha enrolada em torno de si mesma, muitos começos se juntam a muitos meios e fins. Tudo comprimido, retorcido, embaraçado.
Não sei por onde começar. Corto a linha e estico o tempo. O meu tempo. Eu escolho um começo e posso fazer dos fins novos começos. Hesito. Não sei onde cortar. Roço a tesoura ao longo do fio e, meio displicente, pressiono a lâmina. Pronto. Fez-se um começo.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
domingo, 16 de novembro de 2014
Fora de Esquadro
Entrou
no apartamento. Poeira e escombros. A reforma havia começado há exatos nove
dias. Como sempre, estava arrependida, mas não podia mais voltar atrás.
Precisava continuar nadando para alcançar a outra margem ou um navio que passe
para lhe salvar. Quem? Não entendia nada de projetos. Gastou o que não tinha e
viu a viagem do final do ano, a primeira que faria em muitos anos, pisada pelo
pedreiro e dois serventes. Onde estava o copo? Não havia mais o seu copo, havia
alguns copos coletivos, copos de todo mundo. Vinha-lhe a advertência da mãe.
Beba no seu copo! Só no seu copo! É uma questão de higiene, minha filha. Quarenta
e oito anos depois ainda lembrava dos conselhos da mãe, como se um ferro quente
tivesse marcado aquilo bem fundo em alguma parte que ela não conseguia
reformar. Estivesse a pia ainda no lugar lavaria o copo, mas a sede, a bagunça
e os copos meio empoeirados lhe convenceram a beber no mais limpo, no mais
perto, no que conseguisse encontrar, no que estivesse sobrando. Deveria haver
uma vantagem, a imunidade sempre aumenta. A cozinha e dois banheiros, o
bastante para ocasionar tudo aquilo.
O
pedreiro já estava muito à vontade depois dos três primeiros dias, já ficava
sem camisa e cantarolava o tempo todo. Entrava em uma casa que não lhe
pertencia mais. “Ela não anda... ela desfila...”. De quem era a música? Até
gostava da música. Estava fora de si, fora desalojada, como se a reforma
remexesse também na sua estrutura psíquica, na sua alma. Lidar com pessoas, não
sabia lidar com pessoas, não sabia mandar, se impor, pedir, ordenar, não sabia
conversar, não sabia o que fazer, não sabia nada, queria ficar sozinha, no
quarto, o refúgio tranquilo em meio à tormenta, queria acabar com tudo aquilo,
queria desaparecer. Mas ia ficar lindo, foi o que a arquiteta disse. Estava
tudo velho, como sua vida, como sua rotina, que era velha mas fazia falta,
queria de volta sua rotina e sua privacidade e sua cozinha. Queria de volta o
homem que nunca teve, mas a reforma não ia mudar nada disso. Era uma capa, um
revestimento, uma mentira, uma desculpa, uma satisfação. Para quem? Raramente
recebia visitas. A quem você quer mesmo impressionar? Satisfação para ela mesma,
não se deixaria envelhecer como uma mulher desleixada, sem vaidade, como alguém
a quem o tempo e os amigos esqueceram, como alguém esquecida pelos próprios
móveis, pelos armários, pelo quarto. Cupim e mofo em toda a madeira. Tudo
precisava de sol, ela precisava de sol e de mar, precisava sair dali, precisava
acabar com aquela maldita reforma, precisava viajar, precisava conversar,
precisava de alguém com quem dividisse aquela maldita reforma e a sua vida.
Aos
poucos foi se reconstruindo tudo. Primeiro o piso, depois as paredes, as
cerâmicas, uma a uma, encontrando seus lugares. O rejuntamento. A pintura. Os
cortes, os encaixes, as quebras, as perdas, o barulho da maquita. Sua vida que
se revolvida em meio à poeira. E aos poucos tudo foi ficando calmo e diferente.
Alguém limpou a poeira, ela contratou alguém para limpar tudo. Aos poucos um
dos serventes deixou de vir, depois o outro. Finalmente pagou o pedreiro, o
pedreiro se foi deixando algumas pequenas coisas por terminar, mas deixava-a,
devolvia sua solidão. Já não tinha mais festa, nem música, nem homem sem camisa
em casa. E, aos poucos, chegaram os carpinteiros, mais barulho. Dessa vez guardou
um copo em seu quarto. O seu copo. Levou água, trouxe para lá algumas frutas
secas e biscoitos, vez um refúgio, estava preparada.
Aos
poucos ficou tudo pronto e diferente. Então abateu-se-lhe um desconforto como
se houvessem mexido em seus nervos, nos seus miolos. Não sabia mais os lugares,
não encontrava mais os potes e as vasilhas, perdeu o ponto do café. Estava tudo
bonito, mas ela ainda estava deslocada, não era mais o seu lugar, teve medo de
não se adaptar e de ter perdido definitivamente a chance de ser aquela velha
esquecida pelos móveis e por todo mundo, mas em paz. Perdeu a viagem e
começaram a aparecer os detalhes, os massacrantes detalhes, prateleiras muito
altas, outras muito baixas, onde bateu a cabeça, uma dor lancinante e aguda lhe
fez esquecer, por um átimo, de tudo, até lembrar-se das cerâmicas desencontradas,
uma poucas, em cima, no encontro do teto, ninguém daria atenção, mas ela sabia,
ela via.
Chegava
na cozinha e a primeira coisa que via era aquele espaço exagerado entre a
cerâmica e forro. Nunca reparou no teto, mas agora era só entrar na cozinha e
lá estava: também entre os móveis e o teto ficou um espaço, um vazio sem
sentido, parecia imenso. O mesmo com o espelho do lavabo, logo o lavabo das
visitas! Um espelho imenso, majestoso, um espelho perfeito, de cristal
bisotado. Não encaixou, não se ajustou na parede entre o teto e a pedra de
mármore, como ela tantas vezes não conseguira se ajustar. Na parte de baixo,
ficou um pouquinho levantado, sacado da parece, forçado por algumas
imperfeições que ela não sabia se eram do mármore ou da sua vida, ou foram da
reforma. Alguém errou. Não ficou bom, definitivamente não ficou bom. Aquilo
denunciava o erro, sua precipitação, sua falta de preparo, sua incompetência,
sua solidão, era o seu vazio. Chamou de novo o carpinteiro. Chamaria também o
vidraceiro, o pedreiro, chamaria até um engenheiro, chamaria um homem que
pudesse consertar tudo aquilo. Exigiria o conserto sem custos. Não era
admissível que o dinheiro e a viagem houvessem sido inutilmente perdidos,
estava tudo imperfeito como antes. Novo, mas imperfeito. Ela continuava
desalojada de si.
Fora
de esquadro. Disse-lhe o carpinteiro. Fora de esquadro? A parede, senhora. A
parede está fora de esquadro. É um problema da construção do prédio, se encosto
de um lado, o espaço aparece do outro. Não posso consertar. Enquanto
conversavam na cozinha, um estrépito agudo avisou que o espelhou quebrou-se no
banheiro, não resistiu à pressão. Como assim? Ela perguntou. Fora de esquadro. Ele
respondeu, como se fosse simples entender. Como minha vida, ela pensou. Fora de
esquadro.
sábado, 1 de novembro de 2014
Alemanha Inusitada
A imagem que tenho da Alemanha era, e ainda é, a do lugar onde tudo funciona, onde as pessoas são altamente educadas, terra da Filosofia e da Música, primeira economia da Europa. O alemão é racional, detalhista, metódico e adora cerveja! Podem dizer que é uma gente fria, mas eles têm sensibilidade musical de Bach e, se alguém ouvir os Concertos de Brandemburgo prestando atenção, duvido que não se sinta tocado.
Contudo, algumas coisas me surpreenderam na Alemanha. Viajar,
afinal, não é se deixar surpreender? Os alemães parecem bastante austeros, mas
feiura nada tem a ver com austeridade. Tegel,
em Berlim, é um aeroporto feio, como a dizer que não fazem gastos
desnecessários. As pessoas andam muito de bicicleta e, quando estacionam, usam
cadeados. Parece que furtam bicicletas por lá! Mas, muito provavelmente devolvem
pertences perdidos. Perdemos a bolsa em um táxi: oitocentos euros, cartões de
crédito, tudo. E a recuperamos! O taxista, cortesmente, levou sua mulher, que
falava inglês, até o hotel e nos devolver a bolsa com um sorriso.
A Berliner
Philarmoniker tem um edifício modernoso às margens do Tiergarten, ambulantes vendendo pretzels na entrada do concerto e
todo mundo comendo pretzels na entrada do concerto, aquele pão enorme segurado
por um pequeno guardanapo por pessoas vestindo ternos, tailleurs e sobretudos
era como uma divertida nota dissonante. Providencial, estávamos com fome. Vinho
e cerveja, só se vende lá dentro e tem que ser rápido, todo mundo animado, toca
a sirene, aos seu lugares, o concerto vai começar.
Uma das vantagens de assistir uma orquestra ao vivo, com
seus quase cem músicos, é que realmente prestamos atenção à música, nota por
nota, compasso por compasso, os gestos do maestro e a resposta da orquestra. Also sprach Zarathustra nunca soou mais
forte e o final, como um coração parando de bater aos poucos, mais
significativo.
Visitamos o muro de Berlim ou o que restou dele, a East Side Gallery. Já era quase noite quando chegamos. Três ou quatro metros de altura, ainda bastante sólido, não parecia ameaçador mas guardava um ar sombrio ora atenuado ora realçado pelas pinturas com temas que retratavam a queda. Algumas pessoas fotografavam, outras simplesmente passeavas. Eu imaginei todos ali cantando The Wall, abraçando uns aos outros emocionados, ainda festejando a queda do muro e tudo que nos separa. Talvez aquelas pessoas imaginassem ou pensassem em algo parecido, mas ficaram surpresas quando me pus a dançar e a cantarolar.
Também há greves na Alemanha! Pegamos uma greve de trens. Tudo
parado e a passagem que havíamos comprado para Dresden foi pro espaço. Alugamos
um carro. O staff do hotel, muito atencioso, resolveu tudo. Devíamos pegar o
carro no aeroporto. Ao chegarmos lá... surpresa! Não havia carro! Nada melhor
que ser enganado ou, pelo menos, vítima de uma falha no agendamento de aluguel
de um carro na Alemanha. Essa experiência com certeza é única. Devo dizer que
já nos devolveram o dinheiro, mas tive que fazer uma reclamação quando cheguei no
Brasil, não foi lá, assim na hora, de forma alemã.
Acabamos indo de ônibus para Dresden e eu, amarguradamente,
deixei de conhecer as famosas autobahns
alemãs, onde não há limite de velocidade. O ônibus é confortável e o motorista
faz tudo: vende as passagens, acomoda as malas, fala ao microfone indicando a
próxima parada e opera uns três aparelhos eletrônicos entre tablets e gps’s. A
rodoviária é pior que a estação de trem que é pior que o aeroporto. Acho que
essa gradação é universal. O ônibus para em todo lugar para pegar gente, mas
todos vão confortavelmente sentados e os horários são cumpridos. Lembrei do
pinga-pinga pra Quixadá, só que aqui muitas vezes eu ia em pé, um calor
desgraçado.
Dresden é uma cidade singular, absolutamente fantástica, linda. Talvez estivéssemos muito influenciados pelo céu absolutamente azul e o sol morno de uma tarde outonal que banhava em tons dourados os magníficos edifícios às margens do Elba. O Brühl`s Terrace deve ser um dos lugares mais lindos e agradáveis da Europa. Passear por lá me deu a sensação de ter entrado no sonho de alguém, o mundo real estava em outro lugar para além da cidade antiga. Dresden está para o séc. XVIII, como Florença e Veneza estão para o séc. XVI.
Voltando para o hotel à noite, perto da praça da catedral de
Dresden, ouvimos o som de um canto lírico, um som distante, mas que era ouvido
claramente pelo silêncio da noite. Eu pensava que os alemães eram mais
respeitosos e silenciosos quando se tratava de volumes. Já era tarde para um
vizinho ouvir ópera àquela altura. Chegando na praça percebemos, contudo, que
era um casal de cantores líricos, elegantemente vestidos, que fazia sua
apresentação na rua, em troca de gorjetas. Revezavam duetos e árias para o
público que se juntava e se dispersava nos intervalos, quando eles bebiam água.
Assumimos nossa posição em um restaurante na praça antiga e
ficamos assistindo ao espetáculo, de vez em quando questionando abobalhados se era
mesmo a voz daquele casal que produzia aqueles sons cristalinos à uma distância
de cinquenta metros. Não havia caixa de som. A catedral parecia ecoar as vozes
e todo o conjunto arquitetônico servia como amplificador.
No dia seguinte, trem para Leipzig, onde assistimos a um
concerto de órgão na Thomaskirche, a
mesma igreja onde Bach regeu por 27 anos. Antes do concerto, uma aula do professor
doutor bam-bam-bam de música da Universidade de Leipzig, chata e minudente como
eu esperava que fosse uma aula alemã, pelo menos para quem não é capaz de
entender as piadas que eu sabia, pelos risos da plateia, que ele de vez enquanto contava. A música me decepcionou
um pouco, eu esperava música barroca e o negócio parecia música moderna com
tantos contrapontos, fugas, variações de escala e dissonâncias. Eu olhava para
o programa incrédulo: era tudo música do século XVIII. Muito irado! Acho que
Bach era um roqueiro do órgão.
Tocamos de trem para Bamberg, uma cidade medieval tombada
pela Unesco onde existem cerca de dez cervejarias artesanais. Consegui
experimentar duas. Bem que tentei degustar as demais, mas, como cada uma tem
graduação alcóolica entre dez e doze por cento, tive mesmo que escolher entre
beber e conhecer a cidade antiga. Na catedral de Bamberg está enterrado o papa
Clemente II, e o casal de santos imperadores Henrique II e sua esposa
Cunegundes. Bamberg é desses lugares que nos levam a pensar como era a vida na
Idade Média, como naquela época, com aquele frio, o povo conseguia construir
edifícios como o Monastério de São Michael e a Catedral de São Pedro e São
Jorge.
Das coisas mais interessantes quando se espera um trem na
Alemanha é a precisão com que ele chega. Se o horário é 09:40, às 09:39 na
plataforma só se enxergam os trilhos, até a curva mais próxima. De repente,
chega o trem, exatamente às 09:40. Pois dessa vez, o trem para Würtzburg atrasou.
Impagável o trem atrasar por mais de uma hora na Alemanha! A mesma tempestade
que deixou todo o hotel sem luz na véspera e nos obrigou a dormir à lua de
velas, bagunçou o horários de todos os trens. Trocamos as passagens e, depois
de pegar o trem errado, fomos parar em Bad Staffelstein, uma instância termal
de águas salgadas com uma estação perdida no meio do nada, ou melhor, no meio
do frio. Chegamos em Frankfurt cinco horas depois, mas garanto que se perder
nos trilhos alemães tem seus prazeres.
Para que a Alemanha não pareça mais alemã do que é, devo
dizer que há mendigos em Berlim. Poucos, mas há. Em Frankfurt há mais. Uma
mulher com uma criança nos pediu dinheiro dentro de uma Starbucks na Goethplatz. Outra, loira, olhos azuis, bem
alemã, nos abordou em um café, dizia, em inglês, que tinha fome. A não ser
pelos tênis muito velhos, pela calça de moletom cinza mais suja que o normal e
uma certa agitação de quem tem vergonha, não se podia dizer que ela passava
necessidade.
As margens do Meno são capazes de tirar qualquer um do corre-corre da cidade grande e abrir os olhos mais tensos às belezas do outono. O Städel Museum vale uma visita, aliás, vale muitas visitas. Não é o Louvre, não é o D’Orsay, mas tem seus encantos, um encanto de quem é austero até na hora de encantar. Frankfurt é cosmopolita, tem um colônia turca bem presente, alguns taxistas são imigrantes, como em Nova York e a catedral é linda, mas austera. Construída entre os séculos XIV e XV, lá se sagraram muitos dos imperadores romanos germânicos.
O suco de maça é simplesmente delicioso, vendido em todo lugar
e de todas as formas, mas água de coco é melhor. Pena que não temos tecnologia,
investimento ou vontade para fazer o mesmo com o caju. Uma repaginada na
cajuína e ela venderia como água.
Resumo da ópera: a Alemanha é mais alemã que imaginava em
algumas coisas e menos em outras. Há greves, mendigos e as pessoas receiam furtos
de bicicletas, mas devolvem bolsas, sobretudo se houver dinheiro e documentos
dentro. Os trens são bons e atrasam de vez em quando e você pode se ver sem o
carro por cujo aluguel já havia pago. Lá não há cerveja ruim. Eu, pelo menos,
não consegui encontrar. E olhe que procurei um bocado!
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
O Retorno de Laura
Laura
acreditava que, no fundo, viajamos para voltar para casa, para nos sentir
estrangeiros em nós mesmos e acolhidos na volta, para experimentar o
estranhamento, para nos perder e nos reencontrar.
Era
seu último dia em Berlim. Tomava café da manhã e esperava o vôo da noite. Uma
mulher de preto tocava Tom Jobim ao piano de cauda, Wave. Laura lembrou de casa e teve uma sensação ruim, como se não
adiantasse fugir. Estava presa em suas lembranças e, quando voltasse, seria
como chegar em um lugar estranho. Serviu-se de uma taça de espumante, um riesling rosé da região do Reno,
levemente adocicado, com uma secura que não a deixava esquecer a aridez de sua
própria vida. Voltou ao seu lugar, ficou apreciando o movimento dos hóspedes. O
piano começou trechos da Rapsody in Blue.
Depois da separação, Laura decidiu viajar mais, sempre sozinha. Nesses
momentos, sua fragilidade dava lugar à independência e ela parecia capaz de
renunciar à sua prisão.
Berlim carregava as marcas do
passado, como se o futuro não se sentisse à vontade ali. A torre de TV parecia
saída dos filmes de ficção da década de setenta, a Ilha dos Museus abrigava um
passado falso. O passado real estava enterrado sob o Memorial do Holocausto,
Laura o havia visitado ontem. Algumas crianças brincavam com alegria entre os
túmulos de pedra, escondiam-se, corriam e gritavam de felicidade. Esses sons,
aos poucos, traziam Berlim para o presente. Era um pouco como Laura se sentia,
em uma guerra surda entre um passado pesado gosmento e um futuro desconhecido.
Depois de tantos anos casada, o seu passado eram os filhos, o mais novo acabara
de entrar na universidade e queria ser médico como os pais. Laura tinha medo. A
medicina lhe obrigou a fazer escolhas difíceis.
No final dos anos oitenta, quando
ela decidiu fazer pós-graduação em São Paulo, decidiu também que não havia
futuro no relacionamento com Carlos. Na época, Carlos Feijó pretendia fazer
pós-graduação em literatura e estudar psicanálise na escola parisiense. Um
sonho. No mundo de Laura não havia espaço para nada que não fosse minimamente
concreto. Ela gostava de ouvir Feijó falar sobre literatura, contar e recortar
a vida de Freud, mas aquilo combinava com fim de noite e o vinho barato que
eles podiam comprar. De manhã ela tinha dor de cabeça e pressa de chegar na
residência. No Brasil dos oitenta, literatura e psicanálise não podiam conduzir
a nada palpável. O despojamento de Carlos, suas calças frouxas, sua barba por
fazer, o cabelo por cortar, sua preocupação com um mundo que não era exatamente
o que vivíamos encantavam Laura, mas também davam medo, como se ela
contemplasse uma paisagem deslumbrante do alto de um abismo. Era preciso comer,
ter filhos e sustentá-los.
Depois disso, Laura pouco ouviu
falar do Carlos Feijó. Eles romperam sem drama. Ficou uma saudade amarga do que
poderia ter sido, lembranças guardadas no mesmo lugar reservado às fantasias.
Laura nunca soube ao certo o que havia vivido com Carlos, eram muito jovens e
na juventude tudo passa rápido. Sabia apenas que ele se tornou professor de
literatura brasileira em uma universidade alemã. Depois da separação ela
pensava mais e mais em Carlos, como se procurasse uma explicação para o
fracasso do casamento. Repassava o que poderia ter sido se tivesse embarcado
com ele para uma especialização em Paris. Esses pensamentos eram um céu
enevoado que atrapalhava o sol claro de sua vida, o sol de um dia azul de
verão, onde era possível distinguir luz e sombra com exatidão.
Depois da separação, o céu ficou
cinzento. Laura viajava para voltar à segurança daquele céu azul sem nuvens,
mas sempre encontrava um chiaroscuro,
como uma tela de Caravaggio em que a parte mais iluminada era também a mais
pavorosa. Às vezes, ela tinha a impressão de ver a tela toda e constatava que
havia beleza mesmo no temor e no desespero.
Esperou o final da Rapsody in Blue. Admirou o vão da
recepção, o pé direito da altura dos nove andares do hotel, salpicado de vidros
vermelhos. Resolveu se despedir da Nefertiti no Neues Museum. Há mais de três
mil anos aquela mulher conservava um semblante altivo e resignado de quem sabe
que o arrependimento pelas escolhas feitas não faz qualquer sentido. O destino
não nos deixa escolha, ele se impõe e a vida talvez seja apenas um
desdobramento das necessidades do destino.
O Neues Museum ficava a uma curta
caminha do Eurostar Hotel. Ao atravessar a Planckstrasse,
Laura deu com um imponente prédio, onde a solidez do mármore creme contrastava
com a delicadeza de lâminas de vidro compridas e estreitas, parecia a sede de
uma bem sucedida empresa financeira ou tecnológica. Ao se aproximar, viu, nas
inscrições nos vidros da enorme porta giratória, que era um dos edifícios da Alexander von Humboldt Universitat.
Havia um café no átrio com muitos alunos. Ela entrou. Viu a si mesma naqueles
jovens, o mesmo destemor frente a vida, a mesma empolgação arrogante. Atravessou devagar, captando a atmosfera dos
estudantes. Saiu por outra porta giratória no final do imenso átrio.
- Laura!
Ela virou-se, já na calçada.
- Você é a Laura?
Um homem de cinquenta anos,
magro, cabelos cheios, barba rala grisalha, desceu da bicicleta e foi se
aproximando com um sorriso, um olhar maravilhado. Ela demorou a entender.
- Você lembra de mim? Sou eu, Carlos. O Feijó!
Ele falava como se ela estivesse
acordando de um longo coma, testava se não teria havido sequelas depois de
tanto tempo.
- Carlos. Ele repetiu.
Depois de alguns segundos,
estendeu a mão. Ela tocou a mão velha e calejada, uma outra mão, não a do
Carlos de trinta anos atrás. O toque era o mesmo, o mesmo calor. Só então ela
se convenceu de que era ele. Abriu um sorriso, como se sua alma sorrisse
inteira. As quatro mãos estavam unidas, a bicicleta no chão. Eles sorriam meio
assustados. Era como se Laura estivesse finalmente voltando para casa.
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
Sobre Pai, Filho e Sementes
Quando eu era pequeno, meu pai era um super-herói, uma
pessoa dotada de tantas qualidades intelectuais e morais que, ao mesmo tempo
que me maravilhava, me oprimia. Meu pai sabia tudo, era o melhor em tudo, fazia
tudo bem feito, era alto, forte e valente, às vezes muito valente, com uma
fúria que destruía e recompunhas todas as coisas em seu devido lugar. Aos
quatorze anos vi meu pai nu. Não sem roupa. Nu, nu, sem roupa, desde sempre o
vira. Vi meu pai sem as suas vestes míticas de pessoa infalível. Vi meu pai
como um ser humano ordinário. Foi uma decepção e um alívio: eu também podia ser
ordinário.
A adolescência procura todos os defeitos dos pais e os
coloca sob uma lente impiedosa. Talvez seja necessário, do contrário, não
conseguiríamos conviver com o modelo perfeito que nos oprime ou não
conseguiríamos escolher novos caminhos, os caminhos que nos levam para onde
podemos ser nós mesmos. Aos poucos escolhi caminhos que acabaram por me afastar
do meu pai, mas um distanciamento falso porque sempre o tive como referencia,
contraponto, inspiração, oposto, marco, limite ou o que o valha. Exemplo do que
fazer e do que não fazer, símbolo do que buscar e de onde fugir. Modelo em
tantos pontos e antípoda em tantos outros. Descubro-me uma peça de tapeçaria
tecida a partir do espelho que é meu pai, ora como um avesso perfeito, ora como
uma simbiose confusa, ora com tonalidades esmaecidas, outras vezes com cores
fortes, como se aquele primeiro modelo apenas tivesse sido renovado e houvessem
tirados uns excessos daqui e postos outros acolá.
De modo que nunca conseguirei ser como ele nem nunca
conseguirei ser diferente. Carrego meu pai em mim e aos poucos me acostumo e me
alegro com isso, sorrio já mais placidamente ao perceber que jamais serei igual
a ele em generosidade, no modo surpreendentemente leve que encara a vida em
muitos momentos e já não me sinto mais obrigado em lhe atender as expectativas,
ou o que o menino que ainda e sempre viverá em mim julga que são as
expectativas dele. Ainda precisaria viver outro tanto para aprender com sua altivez e retidão de caráter, mas também com suas incoerências, pois como ele aprendi que até a incoerência, essa qualidade que nos lembra a fragilidade humana, muitas vezes é sinal de grandeza, sanidade e amor.
Rendo, portanto, essa singela homenagem ao meu pai, que
cultivou tantas sementes em minha alma e sempre se esforçou para fazer germinar
as melhores, algumas vezes a terra foi lenta, outras vezes, imprópria, mas
ainda me surpreendo com árvores novas no meu quintal e quando lhes descubro as
raízes, me vejo indissociavelmente ligado ao semeador.
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