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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Um Abismo nos Separa

Em memória de Rafal Lemkin

O fato é que não percebi o desvio. Avenida mal sinalizada. Claro, deu pra notar que a via estava em obras, uma estação de metrô ou algo assim. Uma estrutura de concreto, muitos cones. No carro estávamos eu, Alberto e Magno. Talvez o GPS estivesse desatualizado, talvez estivéssemos distraídos demais pelo cenário. Prédios modernos de aço e vidro refletiam edifícios históricos. Um monumento em cada canto.
O pequeno carro alugado caiu em um buraco. Naquela fração de segundo em que a surpresa foi maior que o horror, lembro de ter pensado: "um abismo bem no meio da avenida!? Na maior economia Europa!? Morreremos".
Alguns minutos depois, contudo, estávamos inteiraços às margens da vala. O que não faz um cinto de segurança!? Não tínhamos arranhões nem hematomas. O carro pegou fogo. Formou-se uma confusão ao redor. Bombeiros e polícia chegaram rápido. A via foi interditada. Impossível recuperar os documentos, ficou tudo no carro. Também não adiantava dar muitas explicações à polícia. De um jeito ou de outro, eles cuidariam de tudo. País desenvolvido. O carro estava segurado e bastava. Além disso, não falávamos alemão. Melhor caminhar de volta ao hotel, procurar a embaixada e recuperar os passaportes. Andávamos cabisbaixos tentando elaborar o acidente, mas decidimos não apontar culpados. Aos poucos o espírito da viagem se apoderou de nós outra vez. Íamos observando os edifícios históricos e as pessoas nos cafés com o deslumbramento do olhar estrangeiro.
Uma construção em estilo clássico nos chamou a atenção. A ampla fachada era composta por seis pares de colunas dóricas, encimado por um frontão triangular decorado em alto relevo com cenas de batalhas. Um memorial por todas as vítimas das guerras e das tiranias. As portas estavam abertas. Entramos.
O interior era um grande salão imerso na penumbra. No centro, uma mãe agarrava angustiada e angustiantemente o filho adulto, esquálido e faminto, semi-morto. As figuras deformadas pelo sofrimento envolviam-se por um manto em farrapos como a buscar proteção. A escultura era uma Pietá moderna no sofrimento desolador da guerra.
O silêncio compunha a escultura e aumentava o desespero. Bem em cima abria-se uma claraboia no teto de pé direito alto. Um único facho de luz iluminava mãe e filho imobilizados de pavor. Aquela luz, que se dissolvia na escuridão, parecia ser a única esperança deles.
Todos ali permaneciam em silêncio, havia respeito. Um lamento surdo e profundo ecoava contra os genocídios. Uma jovem fotografava a escultura. Usava óculos de aros vermelhos grandes, como estava na moda. Seus cabelos ondulados, os lábios carnudos, sua atitude absorta e reflexiva, como se não houvesse nada mais importante que fotografar o lugar, me fascinaram. Usava calças jeans justas em uma silhueta esbelta, a camisa branca de pettit poa vermelho deixava transparecer o contorno dos seios. O casaco, ela mantinha amarrado à cintura para facilitar os movimentos com a câmera.
Ora ela desaparecia na sombra do salão, ora se deixava iluminar pela luz da claraboia. Fiquei observando seu balé de vestal. Aproximei-me. Dava para ouvir o barulho abafado do obturador. Cheguei mais perto, ao ponto de ver o brilho de seus olhos castanhos, mas ela não me notava. Tirou mais algumas fotos e saiu.
Quando deixamos o lugar, me invadiu uma sensação de não pertencimento, como se não tivesse o direito de estar vivo. Como se eu fosse menos humano que aquelas pedras abraçadas. Como se a indiferença e a beleza daquela mulher tivessem me aniquilado e me mandado para algum lugar no limbo, onde não se está nem vivo nem morto, onde não há nem sofrimento nem gozo. Onde não somos. Caminhávamos calados quando Alberto quebrou o ar vítreo nos isolava:
- Não falar a mesma língua dos outros é como não existir para eles. As pessoas não prestam atenção em nós.
- Pode parecer esquisito, mas acho que morremos… - Magno deixou escapar um riso vazio, como dos loucos.
Fez-se um silêncio ameaçador. Uma serpente imóvel esperando para dar o bote. Para mim, a morte é um sono sem sonhos. Quem acredita em vida após a morte diz que há um túnel de luz. Sempre aparece alguém conhecido para nos guiar. Dizem que o mundo espiritual é lindo. Na maioria dos relatos de experiência de quase morte não se sente medo, mas um bem estar imenso.
- Porra! Nós morremos! - Magno se descontrolou. Agarrou-se comigo. Puxava meu casaco, chorava aos soluços.
- Magno! Que porra é essa!? Espíritos não se tocam! Presta atenção! Tu não sentes minhas mãos!? - Agarrei-o pelos cabelos, chacoalhando-lhe a cabeça. Ele pareceu recobrar a lucidez. Sentamos em um café.
- Uma água e três expressos, por favor. – Meu inglês era sofrível. Não morremos, estávamos ali adoçando os cafés e bebendo água em copos de vidro bem sólidos.
- Tudo isso é criação da mente. Nós estamos criando essa realidade. Na verdade, estamos mortos. - Magno tinha o olhar vidrado, ainda chorava.
- Cadê o túnel de luz!? - Alberto gargalhava. - Então, não apareceu ninguém para nos levar? Nem anjos nem demônios? Falha do céu! Alooôoo! Esqueceram de mandar os aanjoooos! Magno, se liga! Se estivéssemos mortos, a minha avó Betinha já teria vindo me buscar!
- Perdemos a primeira luz. Quando estamos muito desorientados, é comum perder a primeira luz. Passou tão rápido que não conseguimos perceber o túnel. Estamos vagando.
A voz cavernosa de Magno parecia o ribombar distante de trovões anunciando a tempestade. Minha medula regelou. Estremeci. Senti um peso no estômago. Olhei pro céu acinzentado. A tarde estava muito fria. Me sentia deslocado para outra realidade. Um relógio de rua marcava 13h37min, 7ºC. Não tinha fome. Acho que espíritos não têm fome. Eu pensava na vestal do templo, fotografando mãe e filho desesperados. Me veio à mente uma passagem do Evangelho de Lucas: “entre vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não conseguem”.

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