Laura
acreditava que, no fundo, viajamos para voltar para casa, para nos sentir
estrangeiros em nós mesmos e acolhidos na volta, para experimentar o
estranhamento, para nos perder e nos reencontrar.
Era
seu último dia em Berlim. Tomava café da manhã e esperava o vôo da noite. Uma
mulher de preto tocava Tom Jobim ao piano de cauda, Wave. Laura lembrou de casa e teve uma sensação ruim, como se não
adiantasse fugir. Estava presa em suas lembranças e, quando voltasse, seria
como chegar em um lugar estranho. Serviu-se de uma taça de espumante, um riesling rosé da região do Reno,
levemente adocicado, com uma secura que não a deixava esquecer a aridez de sua
própria vida. Voltou ao seu lugar, ficou apreciando o movimento dos hóspedes. O
piano começou trechos da Rapsody in Blue.
Depois da separação, Laura decidiu viajar mais, sempre sozinha. Nesses
momentos, sua fragilidade dava lugar à independência e ela parecia capaz de
renunciar à sua prisão.
Berlim carregava as marcas do
passado, como se o futuro não se sentisse à vontade ali. A torre de TV parecia
saída dos filmes de ficção da década de setenta, a Ilha dos Museus abrigava um
passado falso. O passado real estava enterrado sob o Memorial do Holocausto,
Laura o havia visitado ontem. Algumas crianças brincavam com alegria entre os
túmulos de pedra, escondiam-se, corriam e gritavam de felicidade. Esses sons,
aos poucos, traziam Berlim para o presente. Era um pouco como Laura se sentia,
em uma guerra surda entre um passado pesado gosmento e um futuro desconhecido.
Depois de tantos anos casada, o seu passado eram os filhos, o mais novo acabara
de entrar na universidade e queria ser médico como os pais. Laura tinha medo. A
medicina lhe obrigou a fazer escolhas difíceis.
No final dos anos oitenta, quando
ela decidiu fazer pós-graduação em São Paulo, decidiu também que não havia
futuro no relacionamento com Carlos. Na época, Carlos Feijó pretendia fazer
pós-graduação em literatura e estudar psicanálise na escola parisiense. Um
sonho. No mundo de Laura não havia espaço para nada que não fosse minimamente
concreto. Ela gostava de ouvir Feijó falar sobre literatura, contar e recortar
a vida de Freud, mas aquilo combinava com fim de noite e o vinho barato que
eles podiam comprar. De manhã ela tinha dor de cabeça e pressa de chegar na
residência. No Brasil dos oitenta, literatura e psicanálise não podiam conduzir
a nada palpável. O despojamento de Carlos, suas calças frouxas, sua barba por
fazer, o cabelo por cortar, sua preocupação com um mundo que não era exatamente
o que vivíamos encantavam Laura, mas também davam medo, como se ela
contemplasse uma paisagem deslumbrante do alto de um abismo. Era preciso comer,
ter filhos e sustentá-los.
Depois disso, Laura pouco ouviu
falar do Carlos Feijó. Eles romperam sem drama. Ficou uma saudade amarga do que
poderia ter sido, lembranças guardadas no mesmo lugar reservado às fantasias.
Laura nunca soube ao certo o que havia vivido com Carlos, eram muito jovens e
na juventude tudo passa rápido. Sabia apenas que ele se tornou professor de
literatura brasileira em uma universidade alemã. Depois da separação ela
pensava mais e mais em Carlos, como se procurasse uma explicação para o
fracasso do casamento. Repassava o que poderia ter sido se tivesse embarcado
com ele para uma especialização em Paris. Esses pensamentos eram um céu
enevoado que atrapalhava o sol claro de sua vida, o sol de um dia azul de
verão, onde era possível distinguir luz e sombra com exatidão.
Depois da separação, o céu ficou
cinzento. Laura viajava para voltar à segurança daquele céu azul sem nuvens,
mas sempre encontrava um chiaroscuro,
como uma tela de Caravaggio em que a parte mais iluminada era também a mais
pavorosa. Às vezes, ela tinha a impressão de ver a tela toda e constatava que
havia beleza mesmo no temor e no desespero.
Esperou o final da Rapsody in Blue. Admirou o vão da
recepção, o pé direito da altura dos nove andares do hotel, salpicado de vidros
vermelhos. Resolveu se despedir da Nefertiti no Neues Museum. Há mais de três
mil anos aquela mulher conservava um semblante altivo e resignado de quem sabe
que o arrependimento pelas escolhas feitas não faz qualquer sentido. O destino
não nos deixa escolha, ele se impõe e a vida talvez seja apenas um
desdobramento das necessidades do destino.
O Neues Museum ficava a uma curta
caminha do Eurostar Hotel. Ao atravessar a Planckstrasse,
Laura deu com um imponente prédio, onde a solidez do mármore creme contrastava
com a delicadeza de lâminas de vidro compridas e estreitas, parecia a sede de
uma bem sucedida empresa financeira ou tecnológica. Ao se aproximar, viu, nas
inscrições nos vidros da enorme porta giratória, que era um dos edifícios da Alexander von Humboldt Universitat.
Havia um café no átrio com muitos alunos. Ela entrou. Viu a si mesma naqueles
jovens, o mesmo destemor frente a vida, a mesma empolgação arrogante. Atravessou devagar, captando a atmosfera dos
estudantes. Saiu por outra porta giratória no final do imenso átrio.
- Laura!
Ela virou-se, já na calçada.
- Você é a Laura?
Um homem de cinquenta anos,
magro, cabelos cheios, barba rala grisalha, desceu da bicicleta e foi se
aproximando com um sorriso, um olhar maravilhado. Ela demorou a entender.
- Você lembra de mim? Sou eu, Carlos. O Feijó!
Ele falava como se ela estivesse
acordando de um longo coma, testava se não teria havido sequelas depois de
tanto tempo.
- Carlos. Ele repetiu.
Depois de alguns segundos,
estendeu a mão. Ela tocou a mão velha e calejada, uma outra mão, não a do
Carlos de trinta anos atrás. O toque era o mesmo, o mesmo calor. Só então ela
se convenceu de que era ele. Abriu um sorriso, como se sua alma sorrisse
inteira. As quatro mãos estavam unidas, a bicicleta no chão. Eles sorriam meio
assustados. Era como se Laura estivesse finalmente voltando para casa.