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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Sobre Pai, Filho e Sementes

Quando eu era pequeno, meu pai era um super-herói, uma pessoa dotada de tantas qualidades intelectuais e morais que, ao mesmo tempo que me maravilhava, me oprimia. Meu pai sabia tudo, era o melhor em tudo, fazia tudo bem feito, era alto, forte e valente, às vezes muito valente, com uma fúria que destruía e recompunhas todas as coisas em seu devido lugar. Aos quatorze anos vi meu pai nu. Não sem roupa. Nu, nu, sem roupa, desde sempre o vira. Vi meu pai sem as suas vestes míticas de pessoa infalível. Vi meu pai como um ser humano ordinário. Foi uma decepção e um alívio: eu também podia ser ordinário.

A adolescência procura todos os defeitos dos pais e os coloca sob uma lente impiedosa. Talvez seja necessário, do contrário, não conseguiríamos conviver com o modelo perfeito que nos oprime ou não conseguiríamos escolher novos caminhos, os caminhos que nos levam para onde podemos ser nós mesmos. Aos poucos escolhi caminhos que acabaram por me afastar do meu pai, mas um distanciamento falso porque sempre o tive como referencia, contraponto, inspiração, oposto, marco, limite ou o que o valha. Exemplo do que fazer e do que não fazer, símbolo do que buscar e de onde fugir. Modelo em tantos pontos e antípoda em tantos outros. Descubro-me uma peça de tapeçaria tecida a partir do espelho que é meu pai, ora como um avesso perfeito, ora como uma simbiose confusa, ora com tonalidades esmaecidas, outras vezes com cores fortes, como se aquele primeiro modelo apenas tivesse sido renovado e houvessem tirados uns excessos daqui e postos outros acolá.

De modo que nunca conseguirei ser como ele nem nunca conseguirei ser diferente. Carrego meu pai em mim e aos poucos me acostumo e me alegro com isso, sorrio já mais placidamente ao perceber que jamais serei igual a ele em generosidade, no modo surpreendentemente leve que encara a vida em muitos momentos e já não me sinto mais obrigado em lhe atender as expectativas, ou o que o menino que ainda e sempre viverá em mim julga que são as expectativas dele. Ainda precisaria viver outro tanto para aprender com sua altivez e retidão de caráter, mas também com suas incoerências, pois como ele aprendi que até a incoerência, essa qualidade que nos lembra a fragilidade humana, muitas vezes é sinal de grandeza, sanidade e amor.

Rendo, portanto, essa singela homenagem ao meu pai, que cultivou tantas sementes em minha alma e sempre se esforçou para fazer germinar as melhores, algumas vezes a terra foi lenta, outras vezes, imprópria, mas ainda me surpreendo com árvores novas no meu quintal e quando lhes descubro as raízes, me vejo indissociavelmente ligado ao semeador.