Fechado.
O horário de visitas
só começava às duas da tarde. Tempo demais para esperar. Ficamos ali apreciando
a construção que se fechara para nós, deixando-nos impressionar pelo lugar,
pelos sons e pela decepção. Recuperamos o fôlego e voltamos para a estação.
Novo trem para Pavia.
Em Pavia, pegamos um
táxi. Pedimos que nos levasse para San Pietro in Cielo d’Oro, a pequena igreja
que abriga os restos mortais de Santo Agostinho. O taxista namorava uma
brasileira e simpatizou conosco. Havia estudado cinema na Universidade de
Bolonha, mas a crise impedia que seguisse outros planos. Fora aluno de Umberto
Eco, o Eco que eu não encontrara em Milão, nem em Bolonha, nem em Pavia.
William pensava em morar no Brasil, o gigante outrora adormecido.
San Pietro in Cielo
d’Oro é uma igreja do século XII, toda feita de tijolos e esconde-se em uma
pequena praça que, naquela época do ano, estava coberta de folhas outonais em
tons marrons amarelados. A igreja é pequena, mas a fachada rústica em estilo
românico consegue ser imponente. Talvez porque ali dentro está Santo Agostinho,
talvez porque na fachada há uma placa de mármore com uma passagem da Divida
Comédia, onde Dante proclama a grandeza do santo e a paz do túmulo:
O
corpo, donde a expulsaram, jaz
em
Cieldauro, e ele veio, da aflição
e
do exílio, direto pra esta paz
Forcei o trinco
gelado da porta estreita com alguma ansiedade. “Entrai pela porta estreita porque larga é a porta e espaçoso o caminho
que leva à perdição”. Fechado. “Muitos
são os chamados, poucos os escolhidos”.
Ficamos um bom tempo
ali, olhando pelo vidro e admirando a fachadaa. O nosso amigo taxista dividia
conosco a frustração. Talvez fosse tanto o desapontamento em meus olhos que ele
se ofereceu para mostrar a cidade, de graça. Insistiu. Aceitamos constrangidos.
Passeou um pouco conosco e nos deixou na catedral de Pavia. Uma construção
majestosa, também em estilo românico, mas muito maior, a fachada elegantemente recortada,
com uma imensa cúpula central. A torre oeste havia caído, ainda podíamos ver os
escombros. Ao lado, nos indicou um restaurante onde almoçamos e tomamos um
inusitado vinho etrusco em vasilhas etruscas. Il Cupolone. Boa e acolhedora comida.
A Universidade de
Pavia é uma das mais antigas e respeitadas da Europa. Descobrimos que tínhamos
amigos em comum com o dono do restaurante. Ele já havia morado em Fortaleza. Mundo
pequeno. Pus-me a pensar nos caminhos e descaminhos da vida. Santo Agostinho de
Tagaste, bispo de Hipona, hoje uma pequena cidade da Argélia, teve seu corpo
trazido para Pavia no século VIII, cerca de trezentos anos depois de sua morte.
Quanto fores velho, estenderás a mão e outro
te cingirá e te levará para onde não queres ir. Fomos ver um mosteiro e o
túmulo majestoso de Santo Agostinho, ao invés disso, fizemos novos amigos,
sentimos os efeitos da crise européia sobre um jovem cineasta e tomamos vinho
etrusco. Não havíamos planejado nada daquilo. Deixamo-nos ir. Há tempo para tudo debaixo do céu.
Lembrei de novo em San Pietro in Ciel d’Oro. O horário da passagem de volta, já
comprada, não nos permitia uma nova tentativa em San Pietro, mas decidimos
arriscar.
Andamos apressados
atravessando a cidade, da Catedral até San Pietro, passando pela Universidade,
o burburinho de estudantes. O vinho nos havia aquecido. Chegamos em San Pietro
faltando exatos trinta minutos para a partida de nosso trem de volta. Entramos.
Lá estava o túmulo de Santo Agostinho, em mármore branco. Realmente majestoso.
Bem no centro do altar. Ninguém na igreja. Decidi subir ao altar, ultrapassei a
cancela, toquei o túmulo do grande santo. Veio um padre, verificou qualquer
coisa e desapareceu novamente na sacristia. A não ser por uma placa de mármore
que registrava de modo solene a visita de João Paulo II, deu-me a sensação de
que Agostinho estava esquecido. Aquele não era um local de peregrinação.
Conclui que Agostinho preferiria aquele silêncio, aquela paz que lhe permitira
contemplar, estudar e escrever daquele modo apaixonado com que escreveu as
Confissões. Não são uma biografia. São uma eloqüente abertura da alma, sem
qualquer pudor. São um se mostrar a Deus e encontrar-se com Ele. Pois, se é
verdade que Ele nos conhece tudo, é também verdade que respeita nossa
privacidade e que ficamos mais próximo Dele quando confiamos e nos mostramos, como
quem se entrega ao amor.
Ali estava eu, no
centro do altar, junto ao túmulo que acreditava que não veria jamais. Na parte
de baixo, os ossos do filósofo Boécio, nascido cinqüenta anos depois da morte
de Agostinho, repousavam, em uma pequena cripta, há mil quatrocentos e oitenta
e oito anos.
Grande relato, Nagibe!
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