Escrever pode mudar tudo.


sábado, 24 de agosto de 2013

Ariano Suassuna por José Vidal

Ariano Suassuna é um dos maiores escritores brasileiros. Fala do nordeste e do seu povo, mas sua temática é universal, como a de todo grande escritor. 

Abaixo, posto a apresentação do autor e de sua obra feita juiz federal e querido amigo José Vidal Silva Neto na última vez que Ariano esteve no Ceará, em uma palestra na Escola Superior de Magistratura do Estado de Ceará. José Vidal é alguém que conhece e entende profundamente a literatura brasileira e universal. Vale a pena a leitura.


Exmos. Senhores e Senhoras, Magistrados e servidores aqui presentes, caro amigo.

  
Além da gentileza dos organizadores do evento, atribuo o convite para apresentar Ariano Suassuna, nome que por si só já diz tudo, e ouso aceitá-lo, à paixão antiga e crescente que sinto pela vida e obra deste grande escritor, um dos maiores que o Brasil viu nascer.

Não estou aqui como crítico literário, que não sou e nunca fui, mas como um leitor entre leitores, que são os verdadeiros destinatários dos árduos esforços espirituais de todo criador.

A obra não é a mera duplicação da vida do escritor, mas necessariamente a pressupõe. De uma certa forma, toda obra é autobiográfica, porque é da substância da vida do autor e das que ele contemplou, que se compõe a sua arte, resultado final do processamento desta matéria bruta no cadinho da alma do artista.

Se a compreensão do enigma astroso da literatura de Ariano não se restringe ao de sua vida, passa por ela.

Nasce Ariano Vilar Suassuna em 16 de junho de 1927, na cidade de Nossa Senhora das Neves, então capital da Paraíba, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Vilar Suassuna.

Sofreu os efeitos da desordem e mal do mundo antes de ter idade bastante para compreendê-lo; contava pouco mais de três anos de idade quando seu pai, que governara o Estado no período de 1924 a 1928, foi assassinado no Rio de Janeiro, em conseqüência da cruenta luta política que se desencadeou na Paraíba às vésperas da Revolução de 1930.

Ecos deste fato sinistro e imutável repercutiram em todas as vertentes de sua obra, como nos seguintes versos de “A Acauhan- A Malhada da Onça: “Aqui morava um Rei, quando eu menino/ vestia ouro e Castanho no gibão/ Pedra da sorte sobre o meu Destino,/ pulsava, junto ao meu, seu Coração”.

Neste mesmo ano, sua mãe, que se mudara com os nove filhos para Pernambuco, por conta da insegurança reinante na Capital da Paraíba, transferiu-se para o sertão paraibano, instalando-se na Fazenda Acauhan, de propriedade da família, e depois na vila de Taperoá, onde Ariano iniciou seus estudos.

A infância passada no sertão foi fundamental para a formação do autor, pois proporcionou-lhe o contato com a cultura popular sertaneja, com as formas de expressão do povo, que viriam mais tarde a ser reelaboradas no seu universo ficcional. Ali o autor apropriou-se do que ele próprio denominou seu “mundo mítico”.

Foi fiel a esta fonte primordial de sua inspiração em todas as gamas de sua atividade literária. As histórias e casos vividos, narrados e cantados no sertão, em prosa e verso, por cantadores e repentistas populares, foram assimilados e integrados ao veio erudito da literatura mundial, adquirindo um tom pessoal inconfundível.

Esta utilização de formas do folclore e da tradição nordestina se afasta, no entanto, de um mero registro folclorista, de uma simples reprodução naturalista de costumes esquecidos e anacrônicos, reduzida às fronteiras físicas da região nordestina.

O nosso escritor não se atém aos limites da história do Brasil ou do Nordeste, por mais que se valha de seus feitos exemplares.

A realidade do Brasil é o ponto de partida, não o ponto de chegada.

Sempre com base nesta realidade, sem fugir dela, mas não se satisfazendo com o seu aspecto puramente fático, exterior, busca o seu sentido profundo, perene, que é de caráter místico, cuja compreensão requer uma abordagem indireta, vazada em linguagem carregada de símbolos.

Nestes indivíduos nordestinos sofridos, castanhos, perdidos numa terra esquecida, cruelmente crestada de sol, encena-se o inteiro drama da existência humana, que chama a si, para se resolver, todas as esferas arcanas celestiais e infernais.

Sua verdade, porém, não é a do filósofo. Se fosse, talvez as esferas absolutas, ideais, permanecessem eternamente alheias e indiferentes ao destino do homem, criatura imperfeita e desprezível, distante do modelo sem defeitos de que foi a imagem e semelhança.

Numa visão do cosmos terrível como esta, a raça humana piolhosa se extinguiria em meio ao impassível silencio do universo. As idéias abstratas, intocadas, da Razão e do Bem, continuariam a pairar indefinidamente para ninguém, no vácuo.

Não é este, de modo algum, o sentido das coisas entrevisto em toda a sua produção, seja a teatral, seja a romanesca, seja a poética.

Estamos diante de um escritor profundamente católico, que não se contenta em aceitar o peso morto do mundo, natural e histórico, e dentro dele, do homem.

Também não concorda com a idéia de que Deus está fora e além da realidade criada.

A tensão entre contrários, característica de todos os seus trabalhos, a cisão entre mundo, homem e Deus, se reconcilia numa convergência entre a evolução que o homem sofre em suas vivências e pasme-se, a evolução que o próprio Deus sofre em sua natureza, decorrente da intervenção divina no destino dos seres criados.

Não seria contraditório admitir que um Deus perfeito muda, devém, se faz algo que não era desde o começo? Ao revés. Um Deus frio, duro, que impôs um fado imutável ao ser humano, desde o início dos tempos, é que seria imperfeito, limitado, indigno de amor.

O homem, em livros como “A Pedra do Reino”, ou em peças como “O Auto da Compadecida”, se diviniza, se salva, é amado no cerne da misericórdia divina, inspira a piedade de Nossa Senhora, concebida sem pecado, que curva mesmo a vontade inflexível do Pai e do Filho.

Os mestiços, cangaceiros, pícaros, fanáticos, se vestem com os mantos da esperança de reis sagrados, de sonho, transfiguram simbólica e alquimicamente sua realidade. Alçam-se aos céus.

Deus se humaniza e se aproxima do homem. É inerente à sua perfeição comprometer-se com a fragilidade humana, assumir o seu invólucro mortal e pecador, sofrer com sua mais amada criatura.

O resgate e a salvação de toda a criação, este é o drama vivenciado no centro da obra de Ariano Suassuna.

Não é a razão ou o bem, que salvam o homem. Há dentro dele uma carga irredutível de irracionalidade, de maldade, que só a graça misericordiosa de Deus e da compadecida fazem cessar. Por si, o homem não se livra das sujeiras adquiridas com o pecado original.

Mas a constância do feio pecaminoso na alma humana, contrariada sempre pela angústia e pela sede de perfeição perdida, sensibilizam Deus. O espetáculo trágico-cômico da vida humana, oscilante entre extremos é, queiramos ou não, belo. O belo que vem da contemplação do feio que absurdamente se nega a sê-lo, e crê, com fé, que será transfigurado em seu exato oposto.

Ariano Suassuna em sua obra literária faz as vezes de Deus na criação. A redenção de ambos é de cunho estético. Ambos amam suas criaturas e acabam por acreditar que são mais belas, melhores, merecedoras de sublimação, do que realmente são.

As belas mentiras que estes seres fabricam acabam por parecer verdades e, de repente misteriosamente se convertem na verdade mesma.

A beleza trágica, mas também cômica, desta embrulhada epopéia humana, concluem em amor e perdão eternos.

Na sua obra “Iniciação à Estética”, Ariano anuncia implicitamente o seu próprio ideário estético.

O feio, o mal, o torto, não são simples ausências de ser ou de existência, não se confundem com o nada, nem servem só para realçar, e tornar nítido o bom e o verdadeiro, como defendia Santo Agostinho.

O feio, o mal, existem, e causam uma singular mistura de sentimentos paradoxais de horror, repulsa, curiosidade, piedade, e até atração, para alguns. De Bruyne, citado por Ariano, diz o seguinte: é o feio, a desgraça, a derrisão, que nos revelam o profundo mistério da nossa realidade complexa, fazendo-nos sentir, num mistério estranho, o valor da nossa vida, a miséria que nos espreita e que contradiz tão cruelmente nossos desejos, nossas esperanças e nossos pensamentos. Quando o Feio surge na arte, é um meio de nos fazer captar de modo intuitivo o sentido da vida.

Mais adiante, o próprio Ariano complementa este pensamento, mostrando-nos, talvez, inconscientemente, a difícil missão que, desde o início da sua carreira, se deu como criador. O enigma do mundo não é algo etéreo, apolíneo. É, sim, violento, chocante, algo apreensível simplesmente por uma captação intuitiva do que nele há de primordial e elementar. 

Finalmente, só com a transfiguração do mal e do feio, atinge-se o subterrâneo da natureza humana e o fundamento de desordem do real, assim colocados diante de nós como uma visão integral do nosso destino, no que tem de belo e bom, mas também no que possui de falhado, de cruel e infortunado.

Sobre o mistério da pessoa e da obra de Ariano, muito mais poderia ser dito. Mas a melhor reação a este inexaurível mistério, no fim das contas, é a do silêncio extasiado.

Deixo-os com a presença, que todos nós ansiamos, deste gênio e intérprete mor da jornada mística da sociedade brsileira para assumir o seu papel fundamental no concerto dos povos.

Muito obrigado.

José Vidal.






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