Escrever pode mudar tudo.


domingo, 8 de dezembro de 2013

Henri Le Boursicaud

Nunca pensei que poderia encontrar Henri Le Boursicaud ali na praça onde caminho. Logo na primeira volta percebi que era ele: velhinho, barba branca, costas curvadas. Estava sentado sob a tenda do Emaús, recebendo doações juntamente com o Airton Barreto, um advogado cearense que mora no Pirambu e tem uma vida de trabalho dedicado aos pobres.

Dei mais algumas voltas, não sabia como abordá-lo. Caminhava com a Trycia e o Paulo. Não queria interromper o exercício, mas tinha medo que ele fosse embora. Não queria falar com ele rapidamente, um cumprimento aligeirado, e depois voltar a caminhar, queria estar com ele por um tempo. Havia mais alguém com eles, uma certa agitaçã, queria mais privacidade. Esperei. Mais uma volta. Mais outra.

Henri Le Boursicaud, o padre redentorista, considerado por muitos um louco, por outros um profeta; o padre que aos 45 anos fez a opção pelos pobres e fundou o Emaús Liberté, uma vertente de proposta mais radical que o Emaús International de Abbé Pierré; o velho que fala verdades duras com os olhos faiscantes: já disse diversas que a Igreja Católica, tal qual a conhecemos, irá acabar e se transformará em uma comunidade de comunidades; o francês bretão que, contra as ordens de seu governo, foi ao Iraque, durante a guerra de 2003, para apoiar os iranianos refugiados; o homem que, aos 75 anos, percorreu 1.500km, de Paris a Roma, a pé, para pedir reformas a João Paulo II. Estava ali.



Agora, ficaram só os dois. De vez em quando, Airton afastava-se um pouco para atender alguém que, de dentro do carro, entregava suas doações. Era a minha vez. Aproximei-me, cumprimentei o Airton, que já conhecia, de modo caloroso, e me dirigi ao Pe. Henri.

- Pe. Henri, vim aqui lhe prestar minha homenagem! Sorri. Apertei suas mãos macias olhando bem no fundo de seus olhos azuis emoldurados por um rosto de pele rósea e lisa. Aos noventa e quatro anos, as mãos trêmulas, seu olhar vivo, sua pele vermelha, seu nariz fino, sua barba branca, tudo nele resplandecia à juventude. Ele mal falava, mas parecia me entender. Agarrou meu braço com firmeza parecendo indicar a cadeira ao lado. Sentei-me.

Fiquei ali com ele, tentando captar o que ele diria, esperando uma palavra, um ensinamento. E ele calado, presente, olhava atento. Falávamos entre nós, Airton, eu, Trycia, Paulo. Criei coragem:

- E a oração, Pe. Henri?

- É o motor. O homem não faz nada sem a oração. A oração consiste em reconhecermos a todo instante que tudo que nos acontece é um presente amoroso de Deus.

- E o mais importante? Diga para ele o que é o mais importante. Airton interveio quase gritando para que ele ouvisse.

- Justiça! Não há amor sem justiça. Justiça! Ele bradava com uma energia que pensei ser característica dos bretões de sua estirpe ou muito própria do Espírito Santo. Os olhos arregalados. Uma rispidez e seriedade que, de repente, explodiam em um sorriso.

- Deus jamais se repete! – Apontou para mim com o olhar mais inquisitivo que acusador. Enérgico.

- Você é único! Você é única! – Apontava para Trycia – Nunca houve outro igual a você nem jamais haverá. Só você pode fazer e falar o que lhe é dado fazer e falar, por isso nunca se omita em defesa da Justiça!


Ficamos calados. Suas palavras ecoavam e, aos poucos, silenciavam sob o barulho da cidade e o canto dos pássaros. Em dado momento, me mostrou, em um de seus livros, uma foto de sua família. Sorriu um riso espontâneo, largo, quando lembrou o fato de que a mãe estava sentada e o pai em pé, na foto, para disfarçar a diferença de altura: o pai tinha 1,80m, a mãe era mignon. Trocava o português pelo francês, o francês pelo português, ia e voltava com o mesmo sotaque. Falou da morte da mãe, uma pequena bretã, firme, enérgica e teimosa, como ele, falou do pai, prisioneiro na Grande Guerra, e dos irmãos, falou do seminário onde foi morar aos 11 anos, da vontade de voltar para casa, da persistência. O dedo indicador tremia sobre a foto. Por fim, disse:

- Tous sont morts. Sorriu.

Fiquei mais um pouco. Estive ali com Henri Le Boursicaud. Depois me despedi, caminhei para casa pensando na Iracema e nos outros mendigos que vivem pela praça e em quantas vezes somos gentis com eles para não precisarmos ser justos, em quantas vezes doamos ao Emaús e a outras instituições de caridade para aliviarmos a consciência e não precisarmos pensar da maldita injustiça.



Um comentário: