A imagem que tenho da Alemanha era, e ainda é, a do lugar onde tudo funciona, onde as pessoas são altamente educadas, terra da Filosofia e da Música, primeira economia da Europa. O alemão é racional, detalhista, metódico e adora cerveja! Podem dizer que é uma gente fria, mas eles têm sensibilidade musical de Bach e, se alguém ouvir os Concertos de Brandemburgo prestando atenção, duvido que não se sinta tocado.
Contudo, algumas coisas me surpreenderam na Alemanha. Viajar,
afinal, não é se deixar surpreender? Os alemães parecem bastante austeros, mas
feiura nada tem a ver com austeridade. Tegel,
em Berlim, é um aeroporto feio, como a dizer que não fazem gastos
desnecessários. As pessoas andam muito de bicicleta e, quando estacionam, usam
cadeados. Parece que furtam bicicletas por lá! Mas, muito provavelmente devolvem
pertences perdidos. Perdemos a bolsa em um táxi: oitocentos euros, cartões de
crédito, tudo. E a recuperamos! O taxista, cortesmente, levou sua mulher, que
falava inglês, até o hotel e nos devolver a bolsa com um sorriso.
A Berliner
Philarmoniker tem um edifício modernoso às margens do Tiergarten, ambulantes vendendo pretzels na entrada do concerto e
todo mundo comendo pretzels na entrada do concerto, aquele pão enorme segurado
por um pequeno guardanapo por pessoas vestindo ternos, tailleurs e sobretudos
era como uma divertida nota dissonante. Providencial, estávamos com fome. Vinho
e cerveja, só se vende lá dentro e tem que ser rápido, todo mundo animado, toca
a sirene, aos seu lugares, o concerto vai começar.
Uma das vantagens de assistir uma orquestra ao vivo, com
seus quase cem músicos, é que realmente prestamos atenção à música, nota por
nota, compasso por compasso, os gestos do maestro e a resposta da orquestra. Also sprach Zarathustra nunca soou mais
forte e o final, como um coração parando de bater aos poucos, mais
significativo.
Visitamos o muro de Berlim ou o que restou dele, a East Side Gallery. Já era quase noite quando chegamos. Três ou quatro metros de altura, ainda bastante sólido, não parecia ameaçador mas guardava um ar sombrio ora atenuado ora realçado pelas pinturas com temas que retratavam a queda. Algumas pessoas fotografavam, outras simplesmente passeavas. Eu imaginei todos ali cantando The Wall, abraçando uns aos outros emocionados, ainda festejando a queda do muro e tudo que nos separa. Talvez aquelas pessoas imaginassem ou pensassem em algo parecido, mas ficaram surpresas quando me pus a dançar e a cantarolar.
Também há greves na Alemanha! Pegamos uma greve de trens. Tudo
parado e a passagem que havíamos comprado para Dresden foi pro espaço. Alugamos
um carro. O staff do hotel, muito atencioso, resolveu tudo. Devíamos pegar o
carro no aeroporto. Ao chegarmos lá... surpresa! Não havia carro! Nada melhor
que ser enganado ou, pelo menos, vítima de uma falha no agendamento de aluguel
de um carro na Alemanha. Essa experiência com certeza é única. Devo dizer que
já nos devolveram o dinheiro, mas tive que fazer uma reclamação quando cheguei no
Brasil, não foi lá, assim na hora, de forma alemã.
Acabamos indo de ônibus para Dresden e eu, amarguradamente,
deixei de conhecer as famosas autobahns
alemãs, onde não há limite de velocidade. O ônibus é confortável e o motorista
faz tudo: vende as passagens, acomoda as malas, fala ao microfone indicando a
próxima parada e opera uns três aparelhos eletrônicos entre tablets e gps’s. A
rodoviária é pior que a estação de trem que é pior que o aeroporto. Acho que
essa gradação é universal. O ônibus para em todo lugar para pegar gente, mas
todos vão confortavelmente sentados e os horários são cumpridos. Lembrei do
pinga-pinga pra Quixadá, só que aqui muitas vezes eu ia em pé, um calor
desgraçado.
Dresden é uma cidade singular, absolutamente fantástica, linda. Talvez estivéssemos muito influenciados pelo céu absolutamente azul e o sol morno de uma tarde outonal que banhava em tons dourados os magníficos edifícios às margens do Elba. O Brühl`s Terrace deve ser um dos lugares mais lindos e agradáveis da Europa. Passear por lá me deu a sensação de ter entrado no sonho de alguém, o mundo real estava em outro lugar para além da cidade antiga. Dresden está para o séc. XVIII, como Florença e Veneza estão para o séc. XVI.
Voltando para o hotel à noite, perto da praça da catedral de
Dresden, ouvimos o som de um canto lírico, um som distante, mas que era ouvido
claramente pelo silêncio da noite. Eu pensava que os alemães eram mais
respeitosos e silenciosos quando se tratava de volumes. Já era tarde para um
vizinho ouvir ópera àquela altura. Chegando na praça percebemos, contudo, que
era um casal de cantores líricos, elegantemente vestidos, que fazia sua
apresentação na rua, em troca de gorjetas. Revezavam duetos e árias para o
público que se juntava e se dispersava nos intervalos, quando eles bebiam água.
Assumimos nossa posição em um restaurante na praça antiga e
ficamos assistindo ao espetáculo, de vez em quando questionando abobalhados se era
mesmo a voz daquele casal que produzia aqueles sons cristalinos à uma distância
de cinquenta metros. Não havia caixa de som. A catedral parecia ecoar as vozes
e todo o conjunto arquitetônico servia como amplificador.
No dia seguinte, trem para Leipzig, onde assistimos a um
concerto de órgão na Thomaskirche, a
mesma igreja onde Bach regeu por 27 anos. Antes do concerto, uma aula do professor
doutor bam-bam-bam de música da Universidade de Leipzig, chata e minudente como
eu esperava que fosse uma aula alemã, pelo menos para quem não é capaz de
entender as piadas que eu sabia, pelos risos da plateia, que ele de vez enquanto contava. A música me decepcionou
um pouco, eu esperava música barroca e o negócio parecia música moderna com
tantos contrapontos, fugas, variações de escala e dissonâncias. Eu olhava para
o programa incrédulo: era tudo música do século XVIII. Muito irado! Acho que
Bach era um roqueiro do órgão.
Tocamos de trem para Bamberg, uma cidade medieval tombada
pela Unesco onde existem cerca de dez cervejarias artesanais. Consegui
experimentar duas. Bem que tentei degustar as demais, mas, como cada uma tem
graduação alcóolica entre dez e doze por cento, tive mesmo que escolher entre
beber e conhecer a cidade antiga. Na catedral de Bamberg está enterrado o papa
Clemente II, e o casal de santos imperadores Henrique II e sua esposa
Cunegundes. Bamberg é desses lugares que nos levam a pensar como era a vida na
Idade Média, como naquela época, com aquele frio, o povo conseguia construir
edifícios como o Monastério de São Michael e a Catedral de São Pedro e São
Jorge.
Das coisas mais interessantes quando se espera um trem na
Alemanha é a precisão com que ele chega. Se o horário é 09:40, às 09:39 na
plataforma só se enxergam os trilhos, até a curva mais próxima. De repente,
chega o trem, exatamente às 09:40. Pois dessa vez, o trem para Würtzburg atrasou.
Impagável o trem atrasar por mais de uma hora na Alemanha! A mesma tempestade
que deixou todo o hotel sem luz na véspera e nos obrigou a dormir à lua de
velas, bagunçou o horários de todos os trens. Trocamos as passagens e, depois
de pegar o trem errado, fomos parar em Bad Staffelstein, uma instância termal
de águas salgadas com uma estação perdida no meio do nada, ou melhor, no meio
do frio. Chegamos em Frankfurt cinco horas depois, mas garanto que se perder
nos trilhos alemães tem seus prazeres.
Para que a Alemanha não pareça mais alemã do que é, devo
dizer que há mendigos em Berlim. Poucos, mas há. Em Frankfurt há mais. Uma
mulher com uma criança nos pediu dinheiro dentro de uma Starbucks na Goethplatz. Outra, loira, olhos azuis, bem
alemã, nos abordou em um café, dizia, em inglês, que tinha fome. A não ser
pelos tênis muito velhos, pela calça de moletom cinza mais suja que o normal e
uma certa agitação de quem tem vergonha, não se podia dizer que ela passava
necessidade.
As margens do Meno são capazes de tirar qualquer um do corre-corre da cidade grande e abrir os olhos mais tensos às belezas do outono. O Städel Museum vale uma visita, aliás, vale muitas visitas. Não é o Louvre, não é o D’Orsay, mas tem seus encantos, um encanto de quem é austero até na hora de encantar. Frankfurt é cosmopolita, tem um colônia turca bem presente, alguns taxistas são imigrantes, como em Nova York e a catedral é linda, mas austera. Construída entre os séculos XIV e XV, lá se sagraram muitos dos imperadores romanos germânicos.
O suco de maça é simplesmente delicioso, vendido em todo lugar
e de todas as formas, mas água de coco é melhor. Pena que não temos tecnologia,
investimento ou vontade para fazer o mesmo com o caju. Uma repaginada na
cajuína e ela venderia como água.
Resumo da ópera: a Alemanha é mais alemã que imaginava em
algumas coisas e menos em outras. Há greves, mendigos e as pessoas receiam furtos
de bicicletas, mas devolvem bolsas, sobretudo se houver dinheiro e documentos
dentro. Os trens são bons e atrasam de vez em quando e você pode se ver sem o
carro por cujo aluguel já havia pago. Lá não há cerveja ruim. Eu, pelo menos,
não consegui encontrar. E olhe que procurei um bocado!
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