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sábado, 1 de novembro de 2014

Alemanha Inusitada



A imagem que tenho da Alemanha era, e ainda é, a do lugar onde tudo funciona, onde as pessoas são altamente educadas, terra da Filosofia e da Música, primeira economia da Europa. O alemão é racional, detalhista, metódico e adora cerveja! Podem dizer que é uma gente fria, mas eles têm sensibilidade musical de Bach e, se alguém ouvir os Concertos de Brandemburgo prestando atenção, duvido que não se sinta tocado.

Contudo, algumas coisas me surpreenderam na Alemanha. Viajar, afinal, não é se deixar surpreender? Os alemães parecem bastante austeros, mas feiura nada tem a ver com austeridade. Tegel, em Berlim, é um aeroporto feio, como a dizer que não fazem gastos desnecessários. As pessoas andam muito de bicicleta e, quando estacionam, usam cadeados. Parece que furtam bicicletas por lá! Mas, muito provavelmente devolvem pertences perdidos. Perdemos a bolsa em um táxi: oitocentos euros, cartões de crédito, tudo. E a recuperamos! O taxista, cortesmente, levou sua mulher, que falava inglês, até o hotel e nos devolver a bolsa com um sorriso.

A Berliner Philarmoniker tem um edifício modernoso às margens do Tiergarten, ambulantes vendendo pretzels na entrada do concerto e todo mundo comendo pretzels na entrada do concerto, aquele pão enorme segurado por um pequeno guardanapo por pessoas vestindo ternos, tailleurs e sobretudos era como uma divertida nota dissonante. Providencial, estávamos com fome. Vinho e cerveja, só se vende lá dentro e tem que ser rápido, todo mundo animado, toca a sirene, aos seu lugares, o concerto vai começar.

Uma das vantagens de assistir uma orquestra ao vivo, com seus quase cem músicos, é que realmente prestamos atenção à música, nota por nota, compasso por compasso, os gestos do maestro e a resposta da orquestra. Also sprach Zarathustra nunca soou mais forte e o final, como um coração parando de bater aos poucos, mais significativo.




Visitamos o muro de Berlim ou o que restou dele, a East Side Gallery. Já era quase noite quando chegamos. Três ou quatro metros de altura, ainda bastante sólido, não parecia ameaçador mas guardava um ar sombrio ora atenuado ora realçado pelas pinturas com temas que retratavam a queda. Algumas pessoas fotografavam, outras simplesmente passeavas. Eu imaginei todos ali cantando The Wall, abraçando uns aos outros emocionados, ainda festejando a queda do muro e tudo que nos separa. Talvez aquelas pessoas imaginassem ou pensassem em algo parecido, mas ficaram surpresas quando me pus a dançar e a cantarolar.

Também há greves na Alemanha! Pegamos uma greve de trens. Tudo parado e a passagem que havíamos comprado para Dresden foi pro espaço. Alugamos um carro. O staff do hotel, muito atencioso, resolveu tudo. Devíamos pegar o carro no aeroporto. Ao chegarmos lá... surpresa! Não havia carro! Nada melhor que ser enganado ou, pelo menos, vítima de uma falha no agendamento de aluguel de um carro na Alemanha. Essa experiência com certeza é única. Devo dizer que já nos devolveram o dinheiro, mas tive que fazer uma reclamação quando cheguei no Brasil, não foi lá, assim na hora, de forma alemã.

Acabamos indo de ônibus para Dresden e eu, amarguradamente, deixei de conhecer as famosas autobahns alemãs, onde não há limite de velocidade. O ônibus é confortável e o motorista faz tudo: vende as passagens, acomoda as malas, fala ao microfone indicando a próxima parada e opera uns três aparelhos eletrônicos entre tablets e gps’s. A rodoviária é pior que a estação de trem que é pior que o aeroporto. Acho que essa gradação é universal. O ônibus para em todo lugar para pegar gente, mas todos vão confortavelmente sentados e os horários são cumpridos. Lembrei do pinga-pinga pra Quixadá, só que aqui muitas vezes eu ia em pé, um calor desgraçado.


 Dresden é uma cidade singular, absolutamente fantástica, linda. Talvez estivéssemos muito influenciados pelo céu absolutamente azul e o sol morno de uma tarde outonal que banhava em tons dourados os magníficos edifícios às margens do Elba. O Brühl`s Terrace deve ser um dos lugares mais lindos e agradáveis da Europa. Passear por lá me deu a sensação de ter entrado no sonho de alguém, o mundo real estava em outro lugar para além da cidade antiga. Dresden está para o séc. XVIII, como Florença e Veneza estão para o séc. XVI.

Voltando para o hotel à noite, perto da praça da catedral de Dresden, ouvimos o som de um canto lírico, um som distante, mas que era ouvido claramente pelo silêncio da noite. Eu pensava que os alemães eram mais respeitosos e silenciosos quando se tratava de volumes. Já era tarde para um vizinho ouvir ópera àquela altura. Chegando na praça percebemos, contudo, que era um casal de cantores líricos, elegantemente vestidos, que fazia sua apresentação na rua, em troca de gorjetas. Revezavam duetos e árias para o público que se juntava e se dispersava nos intervalos, quando eles bebiam água.


Assumimos nossa posição em um restaurante na praça antiga e ficamos assistindo ao espetáculo, de vez em quando questionando abobalhados se era mesmo a voz daquele casal que produzia aqueles sons cristalinos à uma distância de cinquenta metros. Não havia caixa de som. A catedral parecia ecoar as vozes e todo o conjunto arquitetônico servia como amplificador.

No dia seguinte, trem para Leipzig, onde assistimos a um concerto de órgão na Thomaskirche, a mesma igreja onde Bach regeu por 27 anos. Antes do concerto, uma aula do professor doutor bam-bam-bam de música da Universidade de Leipzig, chata e minudente como eu esperava que fosse uma aula alemã, pelo menos para quem não é capaz de entender as piadas que eu sabia, pelos risos da plateia, que ele de  vez enquanto contava. A música me decepcionou um pouco, eu esperava música barroca e o negócio parecia música moderna com tantos contrapontos, fugas, variações de escala e dissonâncias. Eu olhava para o programa incrédulo: era tudo música do século XVIII. Muito irado! Acho que Bach era um roqueiro do órgão.

Tocamos de trem para Bamberg, uma cidade medieval tombada pela Unesco onde existem cerca de dez cervejarias artesanais. Consegui experimentar duas. Bem que tentei degustar as demais, mas, como cada uma tem graduação alcóolica entre dez e doze por cento, tive mesmo que escolher entre beber e conhecer a cidade antiga. Na catedral de Bamberg está enterrado o papa Clemente II, e o casal de santos imperadores Henrique II e sua esposa Cunegundes. Bamberg é desses lugares que nos levam a pensar como era a vida na Idade Média, como naquela época, com aquele frio, o povo conseguia construir edifícios como o Monastério de São Michael e a Catedral de São Pedro e São Jorge.


 Das coisas mais interessantes quando se espera um trem na Alemanha é a precisão com que ele chega. Se o horário é 09:40, às 09:39 na plataforma só se enxergam os trilhos, até a curva mais próxima. De repente, chega o trem, exatamente às 09:40. Pois dessa vez, o trem para Würtzburg atrasou. Impagável o trem atrasar por mais de uma hora na Alemanha! A mesma tempestade que deixou todo o hotel sem luz na véspera e nos obrigou a dormir à lua de velas, bagunçou o horários de todos os trens. Trocamos as passagens e, depois de pegar o trem errado, fomos parar em Bad Staffelstein, uma instância termal de águas salgadas com uma estação perdida no meio do nada, ou melhor, no meio do frio. Chegamos em Frankfurt cinco horas depois, mas garanto que se perder nos trilhos alemães tem seus prazeres.

Para que a Alemanha não pareça mais alemã do que é, devo dizer que há mendigos em Berlim. Poucos, mas há. Em Frankfurt há mais. Uma mulher com uma criança nos pediu dinheiro dentro de uma Starbucks na Goethplatz. Outra, loira, olhos azuis, bem alemã, nos abordou em um café, dizia, em inglês, que tinha fome. A não ser pelos tênis muito velhos, pela calça de moletom cinza mais suja que o normal e uma certa agitação de quem tem vergonha, não se podia dizer que ela passava necessidade.



As margens do Meno são capazes de tirar qualquer um do corre-corre da cidade grande e abrir os olhos mais tensos às belezas do outono. O Städel Museum vale uma visita, aliás, vale muitas visitas. Não é o Louvre, não é o D’Orsay, mas tem seus encantos, um encanto de quem é austero até na hora de encantar. Frankfurt é cosmopolita, tem um colônia turca bem presente, alguns taxistas são imigrantes, como em Nova York e a catedral é linda, mas austera. Construída entre os séculos XIV e XV, lá se sagraram muitos dos imperadores romanos germânicos.

O suco de maça é simplesmente delicioso, vendido em todo lugar e de todas as formas, mas água de coco é melhor. Pena que não temos tecnologia, investimento ou vontade para fazer o mesmo com o caju. Uma repaginada na cajuína e ela venderia como água.


Resumo da ópera: a Alemanha é mais alemã que imaginava em algumas coisas e menos em outras. Há greves, mendigos e as pessoas receiam furtos de bicicletas, mas devolvem bolsas, sobretudo se houver dinheiro e documentos dentro. Os trens são bons e atrasam de vez em quando e você pode se ver sem o carro por cujo aluguel já havia pago. Lá não há cerveja ruim. Eu, pelo menos, não consegui encontrar. E olhe que procurei um bocado!

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