Faltavam cinco minutos
para o meio-dia quando o celular tocou.
- Alô.
- Lola, Manuel.
Poderíamos almoçar na Monsenhor Tabosa? Estou cá a fazer umas compras. Havíamos
combinado no Shopping, mas como cá já estou...
Era o primeiro encontro
deles. Conheceram-se na internet, amizade nem tão improvável entre uma
brasileira e um português. Outros dois patrícios já haviam passado pelos seus
lençóis, cada um deixando suas marcas. Cicatrizes que não doíam mais. Não podia
negar que não estivesse ansiosa. Já o conhecia de fotos, sabia que ele tinha
três filhos do primeiro casamento e um pouco mais de cinqüenta anos, sabia dos
seus cabelos grisalhos e até da sua barriga pronunciada. Dividiam uma certa
intimidade que, como ela já experienciara, inexplicavelmente desaparece com o
encontro pessoal. Estar com alguém é diferente. Há sempre um jeito de olhar, um
movimento de ombros, um jeito de posicionar os dedos, o abrir e fechar da boca
que é capaz de dizer muito mais que as mensagens eletrônicas. E tanto quanto revela,
oculta.
- Por mim tudo bem.
Onde você está?
Concordou a
contragosto. Já estava a meio caminho do Shopping Center, seria preciso voltar.
Gasolina cara, carro sem ar-condicionado e o calorão do Ceará. Além disso, convenhamos,
a Monsenhor Tabosa não era lugar para um primeiro encontro. Aquele apinhado de
lojas sem qualquer sofisticação, aquela gente suada, aquele sol que não dava
trégua.
Aos trinta e nove anos
Lola pensava na vida como uma sucessão de dias, alguns bons, outros ruins. Não
esperava muito, não fazia planos, se contentava com os pequenos prazeres do
dia-a-dia: a novela da noite, o chope da sexta-feira, os amores das amigas, a
balada no fim-de-semana. Mas, como uma adolescente, ainda sonhava com o
príncipe encantado. Idealizava-o perfeito, alto, másculo, forte, rico, muito
além das possibilidades do real, conquanto já houvesse, há algum tempo, dispensado
o cavalo branco. Reservava para o amor todos os seus anseios e sonhos, tudo que
a aridez do dia-a-dia não lhe era capaz de dar. E ali estava ela novamente, um
frêmito diante do desconhecido, outra chance. Talvez desta vez. Seria o Manuel?
Encontrou-o de pé
debaixo de uma palmeira. Refestelando-se sob o mesmo sol que aqueceu o sonho de
seus antepassados quinhentos anos atrás, esperava sua índia, sua Iracema. Seus
ossos ainda traziam o cinza do inverno português, que esperava expurgar nos
seios daquela brasileirinha. Estava quase feliz, quase contente de almoçar com
uma mulher mais jovem, com quem poderia compartilhar alguns bons momentos
durante sua estadia. Fariam um almoço rápido, depois algumas compras sob o sol,
sempre sob o sol, queria o sol, queria o calor dos braços e pernas brasileiras,
nada podia ser mais revigorante. Quando a viu, ela lhe pareceu um pouco mais
velha que nas fotos, um pouco mais sem graça. Talvez o uniforme do trabalho, o
suor que lhe desmanchava a maquiagem. Ofereceu um sorriso cortês, quase
entusiasmado.
Ela estava um pouco
sarapantada. O calor, o sutiã que lhe apertava, o ruge-ruge de gente,
ambulantes pelas calçadas, a buzina dos carros, como poderia mergulhar no
momento? Ele lhe pareceu patético segurando os pacotes à sombra da palmeira, a
camisa encharcada de suor. Almoçaram em um restaurante simples e quente. Um
self-service simples demais, na verdade. Uma refeição mais demorada e formal do
que ele gostaria, mais barata e deselegante do que ela sonhara. Falaram sobre o
tempo, a cidade, a viagem. Tudo o mais ficou para o jantar, ela precisava
voltar para o trabalho. Atender telefonemas, receber pessoas, marcar e desmarcar
reuniões, enviar comunicados; o secretariado tem dessas desvantagens, lhe faz
imprescindível no local de trabalho. Não podia simplesmente dar ordens,
resolver pelo telefone ou pela internet, ela recebia ordens.
À noite foi sushi e sashimi. Era um restaurante japonês charmoso e bem decorado,
iluminado à meia luz, este sim, digno de um primeiro encontro. Comeram devagar,
bebiam vinho. A textura macia do salmão e o leve torpor do vinho envolviam-na
em uma atmosfera sensual e lassa, de repente sentia-se uma fêmea completamente
dona de si. Ninguém poderia lhe fazer crer naquele momento que o príncipe
encantado não existisse.
- Prometa que não será
um cafajeste comigo – Ela pediu.
Lola pensou que talvez
enxergasse melhor à noite. Ele era, sem dúvida, muitíssimo delicado, nada de
patético. Seus cabelos grisalhos transmitiam segurança. Apesar da barriga
protuberante, seus braços ainda eram bem fortes. Cuidaria dos filhos dele, não
lhe parecia uma má idéia morar em Portugal.
Depois da sobremesa ele
fez aparecer um lindo presente. O pacote dourado amarrado com laço de fita fez
brilhar os olhos de Lola. Era um presente especial. Não se podia fazer um
embrulho assim em
Fortaleza. Ele o trouxera da Europa, sem dúvida. Mais um
pouco e teria ficado embaraçada. Retirou a fita com cuidado e rasgou o papel em
um estrépito grave. Desde criança acreditava que lhe dava muita sorte rasgar os
papéis de presente. Descortinou-se uma linda caixa de cetim azul. Uma jóia? Já
uma joia!? Abriu-a.
Um porta-perfume de
louça com o brasão de Portugal. Procurava entender... Tentava concatenar as
idéia e disfarçar o desapontamento.
- Muito obrigada,
Manuel... – gaguejou – Você é muito delicado...
Manuel deliciava-se com
o brilho dos olhos de Lola, sua surpresa, sua ansiedade, a sofreguidão mal
disfarçada com que abriu o presente. O porta-perfume que havia sido de sua tia
Amélia, havia tido seu efeito. Era uma peça de toucador linda, antiga, valiosa,
como não se via no Brasil, como não se vendia mais: uma relíquia. Podia ter
certeza que a conquistara e que a noite e a estadia no Brasil seriam
maravilhosas, emaranhando-se em calorosos braços e pernas brasileiras. Lola
sorria lânguida, não recusou quando Manuel segurou suas mãos com um olhar
vitorioso, certo de que a havia subjugado. Ele apertava de um jeito
inconveniente a junção de seus dedos com as palmas das mãos. Finalmente foram
para o hotel, no carro dela.
Tinha a forma de um
falo. Um falo branco, bojudo e liso, com uma tampa que parecia uma cúpula
bizantina, circundada por uma linha dourada. Meu Deus, por que um
porta-perfume? Por que tão ricamente embalado? Não se embala assim um presente
tão inexpressivo. Era injusto com ela. O papel dourado lhe permitira sonhar com
um príncipe, com um amor de verdade. De que lhe serviria, afinal, um porta-perfume
de toucador? Ela era uma mulher moderna. Não tinha ainda quarenta anos. Daria,
pelo menos, para carregá-lo na bolsa? Impossível sem derramar o perfume. Podia
sentir o cheiro das irmãs francesas dele, as duas na casa dos setenta.
- Não vai subir? Vamos
tomar alguma coisa. Quem sabe conversamos um pouco mais... – Disse ele
utilizando-se de todo seu poder de persuasão.
- Estou um pouco
cansada, Manuel. – Foi o que Lola conseguiu dizer. Mandou-lhe um beijo que foi
da boca pelos dedos desfazendo-se em um aceno.
O encanto se desfez.
Deitou-se sozinha em casa, o travesseiro entre as pernas. Custou a dormir. Um
porta-perfume!? De louça!?
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