Cortei na carne. Acho que descartei
mais de duzentos, talvez trezentos. Não sei, desisti de contar. Comecei fazendo
uma faxina. Não uma simples faxina. Uma senhora faxina. As aranhas estavam
dominando tudo, apareciam com suas teias por todos os lados. No começo foram
bem vindas. Estavam comendo as traças e as traças estavam comendo os livros.
Depois saiu tudo do controle. Parecia haver espaço e comida para as traças e
para as aranhas e quanto mais traças, mais aranhas.
Chamei uma especialista.
Especialista em faxinas, não em traças ou em aranhas. Seria simples. Era
retirar os livros das estantes, limpar um a um, limpar as prateleiras e
recolocar os livros. Não podia ser mais simples. Ela chegou com ânimo. Demorou um
dia inteiro na limpeza. Ficou ótimo; ou melhor, ficaria ótimo se eu não tivesse
tido a péssima ideia de espalhar naftalina entre os livros com o fim de repelir
as aranhas e as traças. Ninguém poderia aguentar aquele cheiro. Era
simplesmente insuportável. Eu não podia mais trabalhar, usar o gabinete, estar
nele, ler, passar o tempo. Era como estar em uma nuvem de naftalina. Pesquisei
na internet meio displicentemente sobre o naftaleno, falta do que fazer. Quem
procura o que quer, acha o que não quer. Naftaleno: um derivado do petróleo que
pode ser tóxico, talvez cancerígeno. Foi o bastante. Eu não estava disposto a
correr o risco. Era preciso retirar todas as bolinhas de naftalina escondidas
naquele amontoado de livros. Rápido!
A especialista havia sido hábil em
escondê-las. Como um jogo de caça ao tesouro às avessas, saí farejando as prateleiras,
retirando os livros recém limpos, bagunçando o que depois de muito tempo estava
organizado com certa ordem. Todo o processo demorou alguns dias. No primeiro
dia consegui achar e dei fim a cerca de quatorze bolinhas de naftalina, mas o
cheiro continuava. Passava na porta do gabinete e lembrava do guarda-roupa da
minha avó, das gaveta da minha tia e de baratas. Naftalina me lembra baratas.
Continuei a busca durante muitos dias, sempre nas horas vagas. Como um
perdigueiro, continuei farejando as gavetas, os armários, os papéis, achei mais
sete ou oito bolinhas a razão de duas ou três por dia. Depois de mais uns dias,
tudo parecia ter chegado ao fim.
Acho que não havia mais naftalina.
Finalmente o gabinete seria declarado naftalina free, mas os livros estavam um pandemônio, espalhados pelo chão,
fora de ordem, empilhados por todos os lados, por todos os cantos, tudo virou
prateleira, eu não conseguia mais achar minha mesa de estudo. Além disso,
descobri que a especialista estava mais empenhada em limpar os móveis que
propriamente os livros ou em acabar com as aranhas, com os cupins ou com as
traças. Os livros ainda estavam empoeirados. Talvez tudo aquilo fosse, afinal,
um grande trabalho de Sísifo. Alguns dias depois da limpeza, as aranhas estavam
de volta e havia pequenas asas por todos os cantos. Na época das chuvas, os
cupins se transformam em formigas de asas, saem não sei de onde e caem nas
teias, algumas conseguem escapam por entre os livros.
Foi quando bateu a crise. A verdade
é que estava cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a limpar os
livros, enquanto eu estava cada vez mais disposto a comprá-los. Comprá-los sem
garantias que serão lidos um dia. É que há livros que me deixam menos ansioso
só de tê-los por perto. Vejo-os na estante e acredito, por um instante, que
algum dia poderei lê-los, conversar com eles, conhecê-los melhor. O
conhecimento ali guardado, de algum modo, estaria acessível e protegido por
mim. Tenho certeza, como toda pessoa sensata, que morrerei sem ter lido nem a
décima parte do que gostaria. Como também é certo que às portas da morte terei
esquecido de quase tudo que li, das melhores conversas com os melhores amigos e
de muitos bons momentos. O que me leva a crer que não lemos para lembrar, assim
como não vivemos para a memória, lemos e vivemos pelo momento, pelo instante
fugidio em que alguém ou alguma coisa nos comunica algo, nos emociona e temos a
certeza de que não estamos sozinhos, alguém é capaz de nos compreender e sentir
igual a nós.
Nos piores momentos chego a pensar
que os livros me engolirão, como a Esfinge. Decifra-me ou te devoro. E sou
incapaz de decifrar esse enigma dos livros, do amor por eles, da angustia daquelas milhões de palavras fechadas entre
as capas que querem todas gritar ao mesmo tempo, da urgência de ler algum outro
livro quando temos qualquer um nas mãos, da tranquilidade de tê-los perto.
Precisava dominá-los ou seria dominado por eles. Quantos livros são necessários
a um homem? Resolvi limpá-los e organizá-los eu mesmo. Nada de especialistas.
Não delegaria nada. Catalogar. Remover a poeira de um por um. Surpreendi-me com
muitos grifados e marcados. Teriam sido lidos? Onde estava a memória sobre
aquelas folhas? A que pensamentos e reflexões teriam servido? Com alguns, o
contato direto me fazia reviver as mesmas impressões e emoções que me despertaram
algum dia. Seriam as mesmas? A memória nos engana. Lembro a fisionomia, a
personalidade, o jeito de andar de um ou outra personagem, mas me escapa o
nome. Lembro vagamente uma teoria ou argumento, mas me escapa o filósofo, o
jurista, o autor, a própria obra.
A medida que os organizava
precisava encontrar uma resposta satisfatória para a perguntar acusatória: por
que acumular tantos livros? Não fazia sentido. Resolvi descartar o maior número
possível. Jogava-os em uma grande pilha, como se fosse para serem queimados. Já
havia feito isso antes. Mas agora não seriam apenas os ruins, os fracos, os
inúteis, os imprestáveis. Era preciso cortar na carne. Encontrar espaço. Jogar
fora, doar, vender tudo que não fosse absolutamente essencial. A Esfinge a
espreita pronta para me devorar. Terminei exausto. No dia seguinte ainda salvei
muitos da pilha do descarte. Muitos que eu ainda preciso ter por perto. Qual o
enigma dos livros?
Nenhum comentário:
Postar um comentário