Escrever pode mudar tudo.


quarta-feira, 25 de março de 2015

Qual o Enigma dos Livros?

Cortei na carne. Acho que descartei mais de duzentos, talvez trezentos. Não sei, desisti de contar. Comecei fazendo uma faxina. Não uma simples faxina. Uma senhora faxina. As aranhas estavam dominando tudo, apareciam com suas teias por todos os lados. No começo foram bem vindas. Estavam comendo as traças e as traças estavam comendo os livros. Depois saiu tudo do controle. Parecia haver espaço e comida para as traças e para as aranhas e quanto mais traças, mais aranhas.

Chamei uma especialista. Especialista em faxinas, não em traças ou em aranhas. Seria simples. Era retirar os livros das estantes, limpar um a um, limpar as prateleiras e recolocar os livros. Não podia ser mais simples. Ela chegou com ânimo. Demorou um dia inteiro na limpeza. Ficou ótimo; ou melhor, ficaria ótimo se eu não tivesse tido a péssima ideia de espalhar naftalina entre os livros com o fim de repelir as aranhas e as traças. Ninguém poderia aguentar aquele cheiro. Era simplesmente insuportável. Eu não podia mais trabalhar, usar o gabinete, estar nele, ler, passar o tempo. Era como estar em uma nuvem de naftalina. Pesquisei na internet meio displicentemente sobre o naftaleno, falta do que fazer. Quem procura o que quer, acha o que não quer. Naftaleno: um derivado do petróleo que pode ser tóxico, talvez cancerígeno. Foi o bastante. Eu não estava disposto a correr o risco. Era preciso retirar todas as bolinhas de naftalina escondidas naquele amontoado de livros. Rápido!

A especialista havia sido hábil em escondê-las. Como um jogo de caça ao tesouro às avessas, saí farejando as prateleiras, retirando os livros recém limpos, bagunçando o que depois de muito tempo estava organizado com certa ordem. Todo o processo demorou alguns dias. No primeiro dia consegui achar e dei fim a cerca de quatorze bolinhas de naftalina, mas o cheiro continuava. Passava na porta do gabinete e lembrava do guarda-roupa da minha avó, das gaveta da minha tia e de baratas. Naftalina me lembra baratas. Continuei a busca durante muitos dias, sempre nas horas vagas. Como um perdigueiro, continuei farejando as gavetas, os armários, os papéis, achei mais sete ou oito bolinhas a razão de duas ou três por dia. Depois de mais uns dias, tudo parecia ter chegado ao fim.

Acho que não havia mais naftalina. Finalmente o gabinete seria declarado naftalina free, mas os livros estavam um pandemônio, espalhados pelo chão, fora de ordem, empilhados por todos os lados, por todos os cantos, tudo virou prateleira, eu não conseguia mais achar minha mesa de estudo. Além disso, descobri que a especialista estava mais empenhada em limpar os móveis que propriamente os livros ou em acabar com as aranhas, com os cupins ou com as traças. Os livros ainda estavam empoeirados. Talvez tudo aquilo fosse, afinal, um grande trabalho de Sísifo. Alguns dias depois da limpeza, as aranhas estavam de volta e havia pequenas asas por todos os cantos. Na época das chuvas, os cupins se transformam em formigas de asas, saem não sei de onde e caem nas teias, algumas conseguem escapam por entre os livros.

Foi quando bateu a crise. A verdade é que estava cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a limpar os livros, enquanto eu estava cada vez mais disposto a comprá-los. Comprá-los sem garantias que serão lidos um dia. É que há livros que me deixam menos ansioso só de tê-los por perto. Vejo-os na estante e acredito, por um instante, que algum dia poderei lê-los, conversar com eles, conhecê-los melhor. O conhecimento ali guardado, de algum modo, estaria acessível e protegido por mim. Tenho certeza, como toda pessoa sensata, que morrerei sem ter lido nem a décima parte do que gostaria. Como também é certo que às portas da morte terei esquecido de quase tudo que li, das melhores conversas com os melhores amigos e de muitos bons momentos. O que me leva a crer que não lemos para lembrar, assim como não vivemos para a memória, lemos e vivemos pelo momento, pelo instante fugidio em que alguém ou alguma coisa nos comunica algo, nos emociona e temos a certeza de que não estamos sozinhos, alguém é capaz de nos compreender e sentir igual a nós.

Nos piores momentos chego a pensar que os livros me engolirão, como a Esfinge. Decifra-me ou te devoro. E sou incapaz de decifrar esse enigma dos livros, do amor por eles, da angustia  daquelas milhões de palavras fechadas entre as capas que querem todas gritar ao mesmo tempo, da urgência de ler algum outro livro quando temos qualquer um nas mãos, da tranquilidade de tê-los perto. Precisava dominá-los ou seria dominado por eles. Quantos livros são necessários a um homem? Resolvi limpá-los e organizá-los eu mesmo. Nada de especialistas. Não delegaria nada. Catalogar. Remover a poeira de um por um. Surpreendi-me com muitos grifados e marcados. Teriam sido lidos? Onde estava a memória sobre aquelas folhas? A que pensamentos e reflexões teriam servido? Com alguns, o contato direto me fazia reviver as mesmas impressões e emoções que me despertaram algum dia. Seriam as mesmas? A memória nos engana. Lembro a fisionomia, a personalidade, o jeito de andar de um ou outra personagem, mas me escapa o nome. Lembro vagamente uma teoria ou argumento, mas me escapa o filósofo, o jurista, o autor, a própria obra.

A medida que os organizava precisava encontrar uma resposta satisfatória para a perguntar acusatória: por que acumular tantos livros? Não fazia sentido. Resolvi descartar o maior número possível. Jogava-os em uma grande pilha, como se fosse para serem queimados. Já havia feito isso antes. Mas agora não seriam apenas os ruins, os fracos, os inúteis, os imprestáveis. Era preciso cortar na carne. Encontrar espaço. Jogar fora, doar, vender tudo que não fosse absolutamente essencial. A Esfinge a espreita pronta para me devorar. Terminei exausto. No dia seguinte ainda salvei muitos da pilha do descarte. Muitos que eu ainda preciso ter por perto. Qual o enigma dos livros? 

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