Entrou
no apartamento. Poeira e escombros. A reforma havia começado há exatos nove
dias. Como sempre, estava arrependida, mas não podia mais voltar atrás.
Precisava continuar nadando para alcançar a outra margem ou um navio que passe
para lhe salvar. Quem? Não entendia nada de projetos. Gastou o que não tinha e
viu a viagem do final do ano, a primeira que faria em muitos anos, pisada pelo
pedreiro e dois serventes. Onde estava o copo? Não havia mais o seu copo, havia
alguns copos coletivos, copos de todo mundo. Vinha-lhe a advertência da mãe.
Beba no seu copo! Só no seu copo! É uma questão de higiene, minha filha. Quarenta
e oito anos depois ainda lembrava dos conselhos da mãe, como se um ferro quente
tivesse marcado aquilo bem fundo em alguma parte que ela não conseguia
reformar. Estivesse a pia ainda no lugar lavaria o copo, mas a sede, a bagunça
e os copos meio empoeirados lhe convenceram a beber no mais limpo, no mais
perto, no que conseguisse encontrar, no que estivesse sobrando. Deveria haver
uma vantagem, a imunidade sempre aumenta. A cozinha e dois banheiros, o
bastante para ocasionar tudo aquilo.
O
pedreiro já estava muito à vontade depois dos três primeiros dias, já ficava
sem camisa e cantarolava o tempo todo. Entrava em uma casa que não lhe
pertencia mais. “Ela não anda... ela desfila...”. De quem era a música? Até
gostava da música. Estava fora de si, fora desalojada, como se a reforma
remexesse também na sua estrutura psíquica, na sua alma. Lidar com pessoas, não
sabia lidar com pessoas, não sabia mandar, se impor, pedir, ordenar, não sabia
conversar, não sabia o que fazer, não sabia nada, queria ficar sozinha, no
quarto, o refúgio tranquilo em meio à tormenta, queria acabar com tudo aquilo,
queria desaparecer. Mas ia ficar lindo, foi o que a arquiteta disse. Estava
tudo velho, como sua vida, como sua rotina, que era velha mas fazia falta,
queria de volta sua rotina e sua privacidade e sua cozinha. Queria de volta o
homem que nunca teve, mas a reforma não ia mudar nada disso. Era uma capa, um
revestimento, uma mentira, uma desculpa, uma satisfação. Para quem? Raramente
recebia visitas. A quem você quer mesmo impressionar? Satisfação para ela mesma,
não se deixaria envelhecer como uma mulher desleixada, sem vaidade, como alguém
a quem o tempo e os amigos esqueceram, como alguém esquecida pelos próprios
móveis, pelos armários, pelo quarto. Cupim e mofo em toda a madeira. Tudo
precisava de sol, ela precisava de sol e de mar, precisava sair dali, precisava
acabar com aquela maldita reforma, precisava viajar, precisava conversar,
precisava de alguém com quem dividisse aquela maldita reforma e a sua vida.
Aos
poucos foi se reconstruindo tudo. Primeiro o piso, depois as paredes, as
cerâmicas, uma a uma, encontrando seus lugares. O rejuntamento. A pintura. Os
cortes, os encaixes, as quebras, as perdas, o barulho da maquita. Sua vida que
se revolvida em meio à poeira. E aos poucos tudo foi ficando calmo e diferente.
Alguém limpou a poeira, ela contratou alguém para limpar tudo. Aos poucos um
dos serventes deixou de vir, depois o outro. Finalmente pagou o pedreiro, o
pedreiro se foi deixando algumas pequenas coisas por terminar, mas deixava-a,
devolvia sua solidão. Já não tinha mais festa, nem música, nem homem sem camisa
em casa. E, aos poucos, chegaram os carpinteiros, mais barulho. Dessa vez guardou
um copo em seu quarto. O seu copo. Levou água, trouxe para lá algumas frutas
secas e biscoitos, vez um refúgio, estava preparada.
Aos
poucos ficou tudo pronto e diferente. Então abateu-se-lhe um desconforto como
se houvessem mexido em seus nervos, nos seus miolos. Não sabia mais os lugares,
não encontrava mais os potes e as vasilhas, perdeu o ponto do café. Estava tudo
bonito, mas ela ainda estava deslocada, não era mais o seu lugar, teve medo de
não se adaptar e de ter perdido definitivamente a chance de ser aquela velha
esquecida pelos móveis e por todo mundo, mas em paz. Perdeu a viagem e
começaram a aparecer os detalhes, os massacrantes detalhes, prateleiras muito
altas, outras muito baixas, onde bateu a cabeça, uma dor lancinante e aguda lhe
fez esquecer, por um átimo, de tudo, até lembrar-se das cerâmicas desencontradas,
uma poucas, em cima, no encontro do teto, ninguém daria atenção, mas ela sabia,
ela via.
Chegava
na cozinha e a primeira coisa que via era aquele espaço exagerado entre a
cerâmica e forro. Nunca reparou no teto, mas agora era só entrar na cozinha e
lá estava: também entre os móveis e o teto ficou um espaço, um vazio sem
sentido, parecia imenso. O mesmo com o espelho do lavabo, logo o lavabo das
visitas! Um espelho imenso, majestoso, um espelho perfeito, de cristal
bisotado. Não encaixou, não se ajustou na parede entre o teto e a pedra de
mármore, como ela tantas vezes não conseguira se ajustar. Na parte de baixo,
ficou um pouquinho levantado, sacado da parece, forçado por algumas
imperfeições que ela não sabia se eram do mármore ou da sua vida, ou foram da
reforma. Alguém errou. Não ficou bom, definitivamente não ficou bom. Aquilo
denunciava o erro, sua precipitação, sua falta de preparo, sua incompetência,
sua solidão, era o seu vazio. Chamou de novo o carpinteiro. Chamaria também o
vidraceiro, o pedreiro, chamaria até um engenheiro, chamaria um homem que
pudesse consertar tudo aquilo. Exigiria o conserto sem custos. Não era
admissível que o dinheiro e a viagem houvessem sido inutilmente perdidos,
estava tudo imperfeito como antes. Novo, mas imperfeito. Ela continuava
desalojada de si.
Fora
de esquadro. Disse-lhe o carpinteiro. Fora de esquadro? A parede, senhora. A
parede está fora de esquadro. É um problema da construção do prédio, se encosto
de um lado, o espaço aparece do outro. Não posso consertar. Enquanto
conversavam na cozinha, um estrépito agudo avisou que o espelhou quebrou-se no
banheiro, não resistiu à pressão. Como assim? Ela perguntou. Fora de esquadro. Ele
respondeu, como se fosse simples entender. Como minha vida, ela pensou. Fora de
esquadro.
ótimo! E gostei daqui :)
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